A Igreja e a Bioética (III)

Alexandre Andrade Martins

Em busca de um diálogo autêntico e profundo para melhor defender a vida dos nossos povos

Pelo nosso estudo percebemos que a reflexão bioética na América Latina tem avançado e a Igreja contribui nesse processo. Porém poderia ser uma contribuição mais positiva e profunda se acontecesse um diálogo mais aberto no qual fosse superados os preconceitos (de todos os lados, tanto religioso como laico) em vista do bem comum de toda sociedade. Percebemos que existem muitas tensões no campo da bioética, mas é possível ir além das tensões em busca de um diálogo fecundo. Vimos por parte da Igreja algumas dificuldades em apresentar suas doutrinas e posturas de forma livre para serem discutidas e questionadas. O julgar mostrou, a luz da fé, que é possível estabelecer um diálogo profundo para o bem dos nossos povos apresentando a teses tradicionais da Igreja para serem debatidas e delas buscar luzes para responder questões não existentes no passado. Olhamos para a história atual com seu contexto e problemática e buscamos pistas, em diálogo com os pensadores do mundo extra-igreja, para melhor servir os nossos povos. Novas questões exigem novas respostas (ou no mínimo respostas adaptadas e contextualizadas), isso não significa renunciar o tradicional necessariamente, mas não ficar preso nele se não adéqua mais o nosso presente. Fazer como Jesus fez no diálogo com o escriba, que não rejeita a Torá, mas avança no seu ensino partido dela e considerando a realidade. Como diz o Vaticano II na Gaudium et spes: estar atentos aos sinais dos tempos e interpretá-los a luz do Evangelho pela força renovadora do Espírito Santo.

Depois desse caminho de vermos a realidade analiticamente e julgarmos a luz da fé, agora vamos propor algumas pistas de ação que possam possibilitar e favorecer a relação entre a Igreja e a bioética para o bem dos povos latino-americanos.

Primeiramente a Igreja precisa investir na formação de pessoa no campo da bioética. Investir para que ajam pessoas com uma visão do todo para conhecerem bem a doutrina e a história da Igreja (em outras palavras, saibam teologia), mas que também se especializem em bioética e conheçam bem esse campo, sobretudo no que diz respeito ao mundo da saúde. Assim a Igreja precisa investir na formação especializada de leigos, religiosos, sacerdotes e bispos no campo da saúde e na bioética. Isso para evitar uma visão muito reduzida, possível de acontecer quando se leva para a reflexão bioética e seu debate no mundo científico laico pessoas vindas apenas com formação teológica moral e sem conhecimento algum prático e teórico da complexa realidade em torno do mundo da saúde. Pessoas formadas especificamente em bioética terão maior aceitação no debate bioético além dos muros da Igreja e poderão certamente contribuir mais para essa reflexão, pois conhecem a realidade da qual estão falado. A operacionalização disso pode se dar de diversas formas. Sugerimos algumas: colocar no currículo dos futuros padres estágios pastorais voltados para o mundo da saúde. Criar cursos nas universidades católicas de especialização, mestrado e doutorado em bioética e destinar religiosos e leigos católicos engajados para esses cursos com todo apoio e incentivo da instituição Igreja. Organizar debates, conferências, seminários, simpósios e congressos votados para os temas de bioética e convidar representantes das diversas correntes para participarem dentro de um ambiente livre e aberto. Organizar e desenvolver pesquisas nas quais seja possível a presença de estudiosos de fora da Igreja, depois divulgar os resultados.

A Igreja também precisa envolver toda comunidade católica nesses debates. Para isso é importante formar os fiéis no campo da bioética para propiciar um maior envolvimento da sociedade nas decisões e, assim, lutar para as decisões não virem apenas das autoridades (civis e eclesiásticas) sem participação popular. Para a Igreja fazer isso é preciso ter sacerdotes, religiosos e líderes leigos preparados para levar ao povo, às comunidades o saber bioético a fim de conhecerem seus dilemas e terem uma base para refletirem. Um meio para fazer isso é organizar cursos nas Paróquias e nas Comunidades Eclesiais de Base sobre bioética. Investir na formação popular, sobretudo dos pobres, que estão mais distantes de todo esse debate e são o primeiros a sofrerem com a exclusão promovida pelo avanço técnico-científico, a ineficiência do sistema público de saúde, com as decisões das instâncias legislativas e a opressão e exploração das elites detentoras de um saber que lhes são negados. A Igreja precisa agir para inserir na sociedade, a começar pelos mais pobres fazendo deles sujeitos de transformação social, no debate público dos temas ligados à bioética.

Por fim, a Igreja precisa promover ações concretas de defesa da vida, ações que testemunham no mundo de hoje Jesus Cristo defensor e promotor da vida com dignidade. Colocar em primeiro lugar a vida, a saúde e a dignidade dos nossos povos e não a defesa da doutrina simplesmente. Nessas ações defender os pobres, pois eles são os mais vulneráveis a todo tipo de desrespeito a vida digna e são vítimas de exploração e excluídas do avanço científico.

Defender a vida e promover a dignidade dos nossos povos, com base na fé cristológica, deve ser algo que determina toda ação da Igreja e com esse espírito, a luz da fé e atenta aos sinais dos tempos interpretados pela assistência do Espírito Santo, entrar sem medo no debate secularizado das questões bioéticas e ter coragem colocar sua doutrina tradicional para ser questionada, adaptada, transformada e até ter alguns pontos superados se assim for preciso para o bem dos nossos povos.

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