Como se morre de frio?

 

Por David Oliveira de Souza

O homem deitado na calçada sentia frio, mesmo usando todas as roupas que tinha. Pensou que a noite seria difícil, porém daria conta. Bebeu o álcool de todos os dias para aquecer, sedar e saciar. Inicialmente dormiu, mas a temperatura cada vez mais baixa na madrugada o acordou por instantes.

Ele estava pálido e trêmulo. Os vasos sanguíneos contraíam-se, tentando levar mais sangue para proteger órgãos vitais, como coração e pulmões. Ele começou a perder energia, já não sentia os membros. O álcool recém-ingerido agravava a situação.

Pensou em levantar para buscar um lugar mais quente, mas a respiração e o pulso fraquejaram. Ele não sabia bem onde estava. Por fim, os tremores cessaram, e o homem deixou de ter controle sobre seus membros. Perdeu completamente a consciência e morreu poucas horas depois. Foi encontrado na mesma posição em que tentou adormecer.

O relato acima tenta descrever brevemente o processo de morte por hipotermia de um morador de rua numa cidade fria. Estudos publicados no Japão e nos Estados Unidos -no Brasil há pouca produção nesse campo- informam que a maior parte desse tipo de morte ocorre na madrugada, das 2h às 5h.

Relatam também que não é simples realizar a autópsia e concluir que a causa da morte foi de fato hipotermia. Os achados dos exames podem ser inespecíficos, e o frio às vezes mata também pelo agravamento de doenças preexistentes.

Atendendo os moradores de rua, muitas vezes vi que a semiologia tradicional que aprendemos nas escolas não dá conta da realidade. Eles não sabem há quanto tempo têm lesão no rosto, porque há muito não se olham no espelho. Não sabem se o calafrio foi febre ou o vento da noite.

Não sabem se estão emagrecendo ou não, pois as roupas doadas são mais largas do que seus tamanhos. Tendem a beber menos líquido, adquirem mais infecções e estão mais vulneráveis à violência e a problemas de saúde mental.

Muitos deles, pela dificuldade crônica de acesso adequado a cuidados de saúde, naturalizam parte de seus sintomas. Muitas vezes vi moradores de rua com tosse, febre e até dor responderem que tudo ia bem com a saúde. Talvez alguns enfrentem a sensação de frio com esse mesmo exercício de silenciar o sofrimento, buscando adormecer e tolerar.

A disponibilidade de albergues com alimentação é de extrema importância, embora seja uma política pública limitada, já que nem todos que moram na rua aderem a essa modalidade de proteção.

Nem por isso, é claro, devem ser ignorados pelas autoridades. Há três semanas visitei um local protegido no qual alguns moradores de rua se abrigavam. Ali, numa calçada bem perto, perguntei para outro por que não ia para o lugar coberto. “Doutor, eu não sou de teto, sou mais da calçada”, respondeu.

Muitos podem discordar dessa posição, achar que o rapaz está louco ao preferir a calçada. Ainda assim, é preciso protegê-lo. Há gente da “calçada” em várias cidades do mundo. Em épocas de frio como esta, Boston e Tóquio, por exemplo, oferecem abrigos, mas também vigiam as ruas em busca ativa de pessoas em risco. A cidade deveria intensificar esse trabalho.

São Paulo tem muitos anjos que rodam as noites ofertando comida, roupas e conforto, todavia isso não tem sido suficiente. Numa noite muito fria, quem quiser ajudar alguém que pareça em risco de hipotermia pode aproximar-se, conversar com a pessoa, ver se está acordada.

Caso seja possível, pode oferecer vestes quentes e orientar que retire qualquer roupa molhada. Cobertores, alimentos, bebidas aquecidas sem álcool e água para hidratar são muito úteis. Você pode ajudar a salvar alguém que não acordaria no dia seguinte a uma madrugada fria.