Compaixão e comunhão: duas chaves para ler o mistério da paixão de Jesus

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Ao aproximar-se a celebração da Páscoa é de se esperar que o melhor de nossa atenção se volte para o mistério da Paixão de Jesus, na qual a Revelação cristã diz que se revelou nossa salvação definitiva.

No entanto, em nossa cultura de hoje, que valoriza o bem-estar, o prazer, o ter, pode ainda encontrar na contemplação de um Crucificado a chave para entender sua própria vida? Mais ainda: a Revelação do Deus Todo Poderoso e Criador, que nunca ninguém viu, pode ser visto e contemplado na figura desfigurada do pobre carpinteiro de Nazaré, entregue à justiça dos homens e por ela injustamente condenado, torturado e morto?

Com palavras radicais e impressionantes, o apóstolo Paulo descreve o mistério que o fascinou no caminho de Damasco e mudou sua vida, convertendo-o de perseguidor em perseguido: o mistério do abaixamento e humilhação do Verbo de Deus até as últimas consequências. Trata-se do famoso hino cristológico que está no 2º capítulo da Carta aos Filipenses:

“Ele tinha a condição divina
mas não se apegou à sua igualdade com Deus
Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo
assumindo a condição de servo
e tornando-se semelhante aos homens.
Assim, apresentando-se como simples homem,
humilhou-se a si mesmo,
tornando-se obediente até a morte e morte de cruz!”
Fil 2,5-8

Paulo começa, portanto, afirmando que Jesus Cristo é Deus: “Ele tinha a condição divina”. Mas revelou-a a nós, não ofuscando-nos com seu esplendor nem esmagando-nos com seu poder, nem mesmo ou muito menos repartindo ordens ou castigos com sua autoridade. Ele o faz despojando-se da condição divina que é a sua, à qual “não se apegou”. “Esvaziando-se de si mesmo” e assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante a nós.

Qual o sentido de tudo isso? Que sentido tem um Deus esvaziar-se de suas prerrogativas e querer ser encontrado ao nosso lado, semelhante a nós, em situação de igualdade ou mesmo de inferioridade e humilhação (“humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte de cruz”).

Parece que o primeiro sentido há que encontrá-lo na própria identidade de Deus. O mais profundo desta não é a onipotência, mas a vulnerabilidade. Deus é vulnerável pelo amor que nos tem. Por causa desse amor desce de sua eternidade para dentro de nossa temporalidade histórica. Sujeita-se ao nosso tempo, limita-se por nossos espaços, serve-nos ali onde estamos. Encarna-se em nossa carne mortal, nasce de mulher, sujeito à Lei, sem lugar para estar. O Verbo pronunciado desde toda a eternidade tem que aprender a falar, a andar; tem que ser ajudado nas coisas mais simples como qualquer ser humano. Participa em tudo – menos no pecado – de nossa fragilidade, de nossa vulnerabilidade. Porque nos ama. Apenas por isso. Livremente e porque assim deseja aproximar-se de sua criatura pecadora.

Uma vez constatado, com estupor, esse mistério, há duas palavras que, ajudando-nos a compreender o sentido do mistério da Paixão de Jesus, ajudam-nos a ver o sentido que deve ter, à luz desse mistério, nossa própria vida humana: compaixão e comunhão.

Somos humanos na medida em que somos capazes de com-paixão. Em uma sociedade de bem-estar, em que somos acossados diariamente a consumir, a desfrutar impunemente das benesses e delícias do prazer e do progresso, onde somos instados a prestar atenção apenas nas pessoas que podem trazer-nos algum benefício ou retribuir-nos de alguma forma os serviços que lhes prestamos, a Paixão de Jesus nos ensina a com-padecer. A abrir o coração e colocá-lo ao alcance do sofrimento e da dor humanas. A deixar-nos configurar por ela, afetar por ela, ser tocados por ela. E deixar que ela comande nossos atos e decisões. Com-paixão, padecer com: esse é o segredo da vida vivida em plenitude. Solidarizar-se com o outro naquela situação onde ele ou ela não nos pode retribuir, pois está reduzido apenas a uma dor sem limites e sem redenção, a um sofrimento sem explicações.

Somos humanos na medida em que somos capazes de comunhão. Comungar com o outro, com sua dor e sua alegria, com sua esperança e sua angústia. Não querer ficar apartados ou distantes das situações que estão sendo vividas e sofridas pelo mais humilde e obscuro de todos os nossos semelhantes – isto é comunhão. É a solidariedade levada a suas últimas consequências. Tudo que afeta o outro me diz respeito e é meu também. Não só seus triunfos ou seus êxitos. Mas também e, sobretudo, seus fracassos, sua solidão, suas incompreensões, sua pobreza. Aquilo pelo qual ninguém o acompanha e que o torna tão repugnante que não pode atrair os olhares nem o interesse de ninguém. Isso é a verdadeira comunhão e só os seres humanos são capazes disso.

A compaixão e a comunhão levaram Jesus de Nazaré a Jerusalém, obediente ao desejo do Pai que queria resgatar e reunir todos os seus filhos dispersos e perdidos, mostrando seu verdadeiro e amoroso Rosto. A compaixão e a comunhão atraíram sobre ele o ódio do mundo e a violência dos que o condenaram e mataram. A compaixão e a comunhão nos salvaram e nos salvam a todos de uma vida vazia e sem sentido, que aposta em objetos efêmeros e voláteis, que hoje nos atraem e amanhã servem apenas para o lixo e a poluição que ameaça o planeta. A compaixão e a comunhão dão espessura à vida humana que ameaça liquefazer-se neste século XXI, que já vai para o final de seu primeiro quartel.

A compaixão e a comunhão nos mostram o verdadeiro rosto do Deus da revelação. Rosto feito de amor e não de ira; de vulnerabilidade e não de distância; de perdão e não de castigo; de bênção e não de maldição. A Igreja e a liturgia nos convidam a seguir Jesus em direção a Jerusalém e a acompanhá-lo na entrega de sua vida. E a fazê-lo com sentimentos de com-paixão e comunhão, para que nossa vida também realize esse êxodo do próprio amor, do egoísmo que nos mata e nos isola em direção ao dom que é a única coisa capaz de realizar-nos como pessoas humanas.