Igreja dos pobres: fundamento de uma Teologia da Libertação

João Leondenes Facundo de Souza Junior

INTRODUÇÃO

No meio do século passado, a Igreja Católica se encontrava em uma encruzilhada entre prosseguir com uma dogmática que esteve presente por toda a Idade Média ou refletir as mudanças advindas do mundo moderno. Tínhamos uma atmosfera de tensão que se refletia na Cúria romana, a saber: de um lado estava a realidade centralizadora que sempre caracterizou a estrutura eclesial e do, outro, uma proposta de abertura para o diálogo com a realidade moderna, com suas dúvidas, desconfianças e com seu choque de injustiças.

Neste artigo, pretendemos refletir em que panorama se desenvolveu a Igreja dos pobres na América Latina, sua fundamentação teológica e o que constitui efetivamente esse ser dos pobres como base para uma Teologia da Libertação. A pesquisa tem como foco analítico os seguintes pontos: (1) João XXIII e o Concílio Vaticano II, (2) Medellín e a Igreja da América Latina, (3) Teologia da Libertação e (4) Eclesiologia da Libertação.

1. JOÃO XXIII E O CONCÍLIO VATICANO II

O papel de João XXIII no Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) foi de singular importância. Não somente pelo ato de conclamar o referido concílio, mas por introduzir nele uma perspectiva de atualização para a Igreja mundial (aggiornamento). É inegável que grande foi a surpresa quando o “papa bom”, até então considerado um papa de transição, abriu as portas da Igreja que pareciam seladas para o mundo moderno. O Espírito acordara de um sono duradouro, era, portanto, hora de trabalhar para abri-lhe caminho. (C.f SANTOS, 2OO7, p.19).

João XXIII expressa na bula Humanae Salutis o anseio pelo qual passou ao realizar o primeiro anúncio do Concílio (25 de janeiro de 1959): “foi como a pequena semente que depusemos com ânimo e mãos trêmulas”. Nada mais humano ao realizar ato tão divino. O Papa sentia que a Igreja tinha por obrigação demonstrar vitalidade, jovialidade (renovação) e irradiar novas luzes ao surgimento de uma nova era (C.f João XXIII, 1961, p 254). Esse aggiornamento era mais que necessário, pois a mais de 16 séculos a Igreja esteve presa a uma dogmática intra ecclesia para, enfim, anunciar a sua abertura ad extra.

Vejamos o que diz João XXIII em seu pronunciamento às vésperas do Concílio Vaticano II, datado de 11 de setembro de 1962: “Em face aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é e como quer ser: a Igreja de todos e particularmente a „Igreja dos pobres” (João XXIII apud Aquino, 2005, p 209). Apesar de não termos tido no concílio o aprofundamento que necessitara a Igreja dos pobres, a fala de João XXIII aponta para um viés que até então era pouco debatido: o de uma Igreja que deve assumir em si a perspectiva dos que estão à margem do mundo.

O Espírito deu sinais de que essa discussão não passaria despercebida, como podemos comprovar através de históricas intervenções. É de especial atenção a manifestação do cardeal Lercaro:

“O mistério de Cristo nos pobres não aparece na doutrina da Igreja sobre si mesma e, no entanto, essa verdade é essencial e primordial na revelação (…). É nosso dever colocar no centro deste Concílio o mistério de Cristo nos pobres e a evangelização dos pobres” (Lercaro, apud Aquino, 2005, p.209).

Essa manifestação resultou posteriormente resultou em uma reflexão contida no capítulo 8 do documento conciliar Lumen Gentium. Corroborando com Lercaro destacamos o pronunciamento do bispo de Tornai, Charles-Marie Himmer, pelo significado que expressa e por seu peso, quando em aula conciliar afirmou: “primus lócus in Ecclesia pauperibus resevandus est” (o primeiro lugar na Igreja é reservado aos pobres). De fato, a causa dos pobres estivera longe de ser ponto central do concílio, a não ser por intervenções pontuais, pois “esta não era a temática que constituía efetivamente o espírito conciliar” (SOBRINO, 1982, p.101).

Havia no concílio um corpo de bispos que representavam os países do “terceiro mundo” e que gozavam de bastante simpatia do papa João XXIII. Nele estava presente nosso saudoso Dom Helder Câmara. Astuto e movido por uma insistência evangélica torna-se uma das referências do grupo da “Igreja dos pobres”. Certa vez, perguntado por um jornalista se esse grupo consistia mais um grupo de pressão, respondeu:

Gosto muito da expressão que nos vem de nossos irmãos franceses: “Igreja servidora e pobre”. O Santo Espírito nos interpelou, nos convocou. Abriu-nos os olhos sobre o dever de cristãos, sobretudo de pastores, a fim de agirmos como o Cristo que, pertencendo a todos, se identificou com os pobres, os oprimidos, com todos aqueles que sofrem. Começamos a procurar como a Igreja toda, especialmente cada um de nós, poderia ser “servidor e pobre” (BEOZZO, 1993, p.95).

Essa “pressão” vira “expressão” de vida quando, ao término do Concílio, celebrando a eucaristia na catacumba de Domitila, o grupo da Igreja dos pobres firma um pacto de propagação de uma Igreja servidora e pobre, para “obterem a graça de serem plenamente fiéis ao Espírito de Jesus „que vos consagrou e vos enviou para evangelizar os pobres‟ (Lc 4,18)” (C.f BEOZZO, 1993, p. 96). Esse compromisso ficou conhecido como o Pacto das Catacumbas[1]. Nele estiveram presentes alguns bispos brasileiros[2], que tinham por objetivo expressar com verdade aos “irmãos no Episcopado” o compromisso de viverem uma vida de pobreza, de rejeitar todos os símbolos ou privilégios do poder e de fazer dos pobres o local por excelência para se exercer os ministérios episcopais. Os bispos encerram o texto com um “ajuda-nos Deus a sermos fiéis”, demonstrando que uma Igreja dos pobres é, de fato, uma fidelidade a Deus.

2. MEDELLÍN E A IGREJA DA AMÉRICA LATINA

O Episcopado latino-americano animado em colocar em prática as decisões do Vaticano II, marcou passo na história, quando após três anos do término do Concílio, realizou a segunda Conferência Episcopal latino-americana na cidade de Medellín.

Medellín refaz, num certo sentido, o Vaticano II e, em muitos pontos dá um passo além: aí emerge pela primeira vez a importância das comunidades de base, esboça-se a teologia da libertação, aprofunda-se a noção de justiça e de paz ligadas aos problemas de dependência econômica, coloca-se o pobre no centro da reflexão do continente (BEOZZO, 1993, p. 117-118).

Medellín prossegue na reflexão iniciada no Vaticano II e por seu incentivador João XXIII. O Papa bom, através de suas encíclicas sociais, toca de forma comprometedora a Igreja da América Latina (Cf. BEOZZO, 1995, P.118). No decorrer do Concílio, como vimos antes, surgiu uma corrente que colocava os pobres como centro da ação evangelizadora e por isso comprometia-se com eles. É, pois, nesta linha que se encontravam os bispos que participam de Medellín.

Conscientes da realidade do continente, os bispos reunidos em Medellín reconhecem que a Igreja não poderia ficar indiferente as injustiças sociais existentes na América Latina. O documento que traz as Conclusões de Medellín está carregado de uma profunda solidariedade para com o povo que sofre. Nele os bispos assumem que a Igreja da América Latina esteve letárgica e, por isso, sentem-se obrigados, como pastores, a dar voz aqueles que não a têm:

“Um surto de clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte. Agora nos estais escutando em silêncio, mas ouvimos o grito que sobe de vosso sofrimento…” (MEDELLÍN, 1979, P.143).

Foi no alvorecer de Medellín que se gestou a Teologia da Libertação (Cf. Oliveros, 1990, p. 30). Isso se deu por uma coesão no episcopado latino-americano e por uma situação histórica popular de opressão e libertação. Na Conferência, a Igreja se compromete a denunciar a carência injusta dos bens necessários para sobrevivência da maioria na América Latina e compromete-se a viver juntos deles (Cf. MEDELLÍN, 1979, p.145). Orienta, portanto, que seus trabalhos pastorais sejam realizados nos setores mais pobres e necessitados.

Percebe-se, todavia, que a Igreja se apropriou da temática dos pobres. Não como meros receptores de um “assistencialismo caridoso”. Em Medellín a Igreja se faz pobre! Isto é, assume a missão deixada por Jesus que sendo rico se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (2Cor 8,9), e compromete-se a “apresentar ao mundo um sinal claro e inequívoco da pobreza do Senhor”. (MEDELLÍN, 1979, p. 150).

A semente está lançada e começa a germinar no seio das comunidades latino-americanas uma experiência de fé que emerge da vida ameaçada e de uma Igreja profética que ouve o clamor do povo. Nasce nas comunidades de base um novo modo de se fazer teologia, fruto de uma prática pastoral anunciada por Medellín.

3. TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

A teologia da libertação nasce do rejuvenescimento que o Vaticano II causou na Igreja da América Latina. Pela primeira vez na história, surge um modo de se fazer teologia tendo como premissa a situação dos povos e das pessoas que constituem o continente latino-americano[3]. A teologia da libertação traz a realidade dos povos para ser aprofundada a luz da fé, oferecendo uma nova visão da missão da Igreja no nosso continente.

Medellín, como vimos anteriormente, destacou de forma profética a situação de injustiça em que viviam os povos de diversos países latino-americanos e esta constatação virou uma bandeira de muitos em favor dos menos favorecidos, o que impulsionou a vários cristãos a comprometerem-se em desenvolver uma nova teologia: “uma nova consciência eclesial começou a se formular a partir de um novo modo de viver a fé daqueles que estavam comprometidos com os pobres e sua libertação” (OLIVEROS, 1990, p.30). Cria-se uma nova concepção do que é fazer teologia na América Latina, a novidade da teologia da libertação foi descobrir que não somente falar de Cristo configura a sua presença no meio dos pobres. Seu pensamento transformador foi se compromete com as pessoas exploradas, a maioria em nosso continente. O próprio Jesus em oração nos diz: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, por teres ocultado isso aos sábios e aos inteligentes e por tê-lo revelado aos pequeninos” (Mt 11, 25-27). De fato, é nos pequeninos desta terra que se configura mais claramente o Mistério de Deus.

Ao contrastar as desigualdades institucionalizadas na América Latina, viu-se que o estado de pobreza que a maioria esmagadora se encontrava não poderia ser a vontade de Deus. A experiência de Moisés com o povo de Israel serviu de base bíblica para se (re)compreender a missão da Igreja. A situação desumana de escravidão e pobreza impulsionaram as reflexões à luz da Palavra de Deus. Viver a Boa Nova implicava necessariamente em uma nova consciência do “ser” e do “como ser” Igreja. A referência do “ser Igreja” está vinculada ao modo de como Igreja a (instituição) se apresenta ao se contrastar com uma realidade desumana e ser tocada por ela, à de se buscar novas práticas pastorais que respondam as necessidades do povo que está preso em cativeiro[4]. Por outro lado, a idéia do “como ser” quer um esforço de reflexão epistemológica da Igreja aos novos desafios e isso é o que faz uma eclesiologia da libertação.

Uma fisionomia nova, um rosto novo de Igreja que tem o Espírito de Medellín foi a base para o desenvolvimento da eclesiologia da libertação. As Comunidades Eclesiais de Base são o exemplo da reunião de cristãos (ecclesia) comprometidos com a fé no Deus de Jesus, e por isso, atuantes no processo de libertação do povo.

A Igreja dos pobres na América Latina não nasce somente de um esforço acadêmico. Ela nasce, primeiramente, da experiência do povo que sofre. Mesmo sem a idéia de teologia o povo latino-americano se recusa a entregar-se a uma estrutura de morte, por isso, emerge dele várias práticas libertadoras[5]. Somente a partir desta prática é que a Igreja se vê impulsionada a fazer uma reflexão eclesiológica. Essa reflexão é caracterizada como o ato segundo, pois o ato primeiro é práxis (GUTIERREZ, 2000, p.18), uma reflexão crítica a luz do Evangelho sobre a vida e a prática cristã eclesial, abre-se neste contexto uma nova forma de anunciar o querigma.

4. ECLESIOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

A teologia da libertação viu na Igreja dos pobres a fidelidade mais singular à pessoa de Jesus Cristo. Nela, se encontra um Deus que ouve o clamor do povo (Ex 3,7b), essa experiência eclesial se tornou a base práxica para sua sustentação teológica.

A Igreja dos pobres despertou várias desconfianças a respeito da sua unidade eclesial, como uma continuação da Igreja de Jesus Cristo: Una, Santa, Católica e Apostólica. Vejamos, portanto, como a Igreja dos pobres não fere essa unidade, pelo contrário, à torna mais explicita, uma vez que tem os pobres como o centro de sua reflexão teológico/pastoral.

Um só Deus, um só Senhor, um só batismo, um só Espírito, como expressa São Paulo.

Na verdade existe um só Senhor, Jesus Cristo, e Jesus histórico, crucificado, servo de Javé e ressuscitado; existe um só Deus, que quer vida aos homens, escuta o clamor dos oprimidos, morre com eles na história e mantém sempre vivos os gemidos de parto de uma nova criação; existe um só Espírito, renovador da história, doador de vida e que fala pelos profetas de outrora e pelos atuais (SOBRINO, 1982, p.111).

Podemos perceber a unidade dos pobres desta Igreja, nela se expressa os pobres como sujeitos ativos desta realização histórica com todos os percalços que a situação de pobreza os coloca. Quando a Igreja se expõe a ouvir as mazelas pelas quais passam os pobres, a enxergar o exemplo de fé que é a vida deles, ela realiza o milagre de socializar que o núcleo da fé é algo que não se divide, anuncia-se. Não se trata de uma predileção de ordem social. Trata-se, sobretudo, de uma unidade com todas as instituições e pessoas de bem, agora de um formato macro, que tem os pobres como fio condutor da ligação com o Ressuscitado.

A. A santidade contida na Igreja dos pobres

A característica de “santa” atribuída a Igreja é uma característica lógica, pois nela se configura um sinal de salvação, e é ela a continuadora do sacramento histórico do amor de Deus, seria uma contradição dizer que ela não é santa (SOBRINO, 1982, p.114). A problemática se estabelece em reconhecer que a Igreja como instituição imersa em uma realidade está em si, configurada em uma estrutura de pecado é, portanto, também, pecadora. Quem concede a característica de santidade a Igreja, é Deus, “e assim não cremos simplesmente na Igreja santa, mas em Deus que santifica a Igreja” (SOBRINO, 1982, p.115).

A Igreja dos pobres reconhece a dimensão pecadora e santa da Igreja. O que a Igreja dos pobres faz é desenvolver características concretas ao amor e ao pecado, nos mostra que para dar visibilidade a santidade contida na Igreja, a práxis do amor tem que ser concreta (perdoem-me a redundância), não como propostas ou discursos “benevolentes”, mas de recriar uma nova realidade do seio de suas comunidades. Para a Igreja dos pobres, a santidade não está contida no estereótipo que vestem seus representantes, mas, aí a pirâmide se inverte, a santidade salvará o mundo na medida em que a Igreja se autoassuma como serva. A santidade nasce a partir de baixo, da solidariedade que brota dos pobres, da comunhão com aqueles que foram perseguidos e martirizados. “Optar pelos pobres é automaticamente optar pela forma de santidade do Servo” (SOBRINO, 1982, p.118). Recupera, portanto, a dimensão de santidade que fora disseminada por Jesus, a quenose. Sem essa santidade a Igreja não encontraria em si a verdade que a constitui.

B. Sua dimensão universal

A catolicidade que constitui a Igreja é a representação da sua universalidade, isto é, a Igreja enquanto católica tem como centro a totalidade do mundo, o que implica:

Visto que nem todos são “homens” da mesma maneira no que se refere a seus meios, direitos e liberdades, aquela comunidade em que todos verão conjuntamente a glória de Deus é criada através da eleição dos humildes, ao passo que os poderosos incorrem no juízo de Deus (SOBRINO, 1982, p. 119-120).

Isso não quer dizer, que se fira a universalidade, pelo contrário, o fato de ser universal, carrega em si uma tradição histórica pelos os que sempre estiveram escondidos da totalidade. O que a Igreja dos pobres faz, é demonstrar que essa parcialidade para com os que sofrem é uma forma práxica para um amor universal. Nesse mesmo sentido, percebe-se que a Igreja dos pobres em nível “local” desenvolve claramente uma originalidade com personagens próprios[6] e a partir de figuras do passado cria uma autoconsciência para reler sua a história.

C. Tradição apostólica

A apostolicidade que constitui a Igreja serve para demonstrar a continuidade de sua ligação direita com os apóstolos, em ordem cronológica e a continuação de uma estrutura eclesial apostólica. A Igreja se constitui em si mesma missionária, “ela existe para evangelizar” (Evangelii Nuntiandi, 1975, n.14). E evangelizar é afirmar que todo o caráter próprio da Igreja (oração, vida religiosa, escuta da Palavra, etc.) não teria sentido pleno senão se converter em testemunho.

A Igreja dos pobres é uma Igreja autenticamente missionária, ela adquire prioritariamente essa característica porque se faz pobre. Isso quer dizer, que essa primazia da essência se configurou mais verdadeira quando os pobres não foram somente os destinatários da missão, mas quando eles foram constituídos missionários. “Não basta dizer que a práxis é o ato primeiro. É necessário considerar o sujeito histórico desta práxis: os que até agora estiveram ausentes da história” (GUTIERREZ, 1977, p.42).

Com o receptor da missão sendo missionário, surge aí uma conotação própria da sua realidade, uma vez que os pobres tornam-se anunciadores da Boa Nova, tornam-se, também, denunciadores das estruturas pecaminosas. Cabe a Igreja perceber que quando ela se converte em Igreja dos pobres esta se encontra mais fielmente ligada a sua tradição, pois, qualquer pessoa que não está inserida na realidade de sofrimento, desesperança, humilhação que passa a grande maioria dos habitantes desta terra, não refletirá com propriedade a tradição apostólica. Os pobres oferecem a direção a ser seguida!

Percebe-se, portanto, que uma Igreja que se constitui em: Una, Santa, Católica, Apostólica e dos pobres, desenvolve em si uma ortodoxia mais propriamente evangélica.

Veremos nos dois pontos seguintes de que forma o ser dos pobres configura em si um critério de identidade singular ao passo que é constitutivo da Igreja de Jesus e como os sujeitos/destinatários privilegiados do anúncio do Reino modificam de forma estrutural a Igreja.

4.1 O SER DOS POBRES COMO NOTA DA IGREJA DE JESUS

No caminho elementar que constitui a Igreja dos pobres está a sua fidelidade a Jesus Cristo, principalmente pela característica essencial em ser dos pobres. Há quem pense que a dimensão dos pobres na Igreja refere-se a um vertente social contida nela, como se Igreja tivesse somente uma função assistencialista com referência aos menos favorecidos.

Uma Igreja dos pobres não é aquela que se coloca fora da realidade de conflito que a cerca, propondo-se somente a oferecer seu auxílio e nem aquela que o faz somente por um conceito ético. Ser dos pobres é algo constitutivo do próprio ser Igreja, é algo que perpassa os conceitos puramente sociológicos ou uma dimensão particularizante de classe social. Afirmar teologicamente sobre a Igreja dos pobres, é dizer que o Espírito de Deus que animou Jesus a anunciar a Boa Nova (Lc, 4, 18-19) é o mesmo que deve orientar a vivência eclesial de sua herdeira, traz portanto, uma questão fundamental de ortopráxis eclesial e de ortodoxia teológica (AQUINO, 2005, p.210), isto é, de uma forma de ser cristão e de seguir Jesus.

No centro da vida da Igreja está a realização do Reino de Deus. Essa centralidade é circunstância sine qua non para a vivência de um cristianismo que tem como princípio a vida e morte de Jesus de Nazaré. Em Mateus 5, quando Jesus proclama as Bem-Aventuranças e inverte o conceito de “felizes”, assumi-se de fato que todos os desgraçados e infelizes: os pobres, aqueles que sofrem, que choram, que são perseguidos, na verdade, que para imensa maioria “não contam”, a eles é reservado o Reino de Deus.

Se como vimos, o Reino está, sobretudo para os pobres e no centro da vida da Igreja se encontra a sua implantação, portanto, uma Igreja que não está constitutivamente para os pobres significa que não está para o Reino, pode-se afirmar que nem Igreja se configura! A felicidade dos bem aventurados não está na pobreza, na fome, na dor ou na perseguição; está na presença de Deus junto deles (VIGIL, p 62). Uma Igreja que se proclama como “Sacramento de Cristo” (LG.1, 1964), isto é, como sinal visível de sua presença entre nós, não pode negligenciar o fato de que a vida de Jesus de Nazaré foi sempre ao lodo dos últimos, assim como também sua morte (Mt 15,27; Lc 22,37). A Igreja que é herdeira desta realidade histórica (SOBRINO, 1982, p. 107) não pode esquecer esse ensinamento eclesiogênico[7].

Assumir a realidade de miséria, dor, sofrimento, martírios é afirmar que todo princípio de organização da Igreja se faz a partir dos pobres, não como “parte” dentro dela, mas como autêntico lugar teológico de compreensão da práxis cristã. Não queremos afirmar aqui que o ser “dos pobres” esgota a identidade da Igreja, mas que é fundamentalmente um dado de fé. A Igreja de Jesus Cristo é a Igreja dos pobres.

4.2 O SER DOS POBRES COMO PRINCÍPIO ESTRUTURADOR DA IGREJA EM SUA TOTALIDADE.

Na medida em que a Igreja percebe, na fidelidade a pessoa de Jesus de Nazaré, os pobres como ponto de partida e de convergência da sua ação pastoral ela se vê impelida a dar demonstrações claras desta vivência. Destarte, os pobres configuram uma forma própria do ser Igreja na medida em que encontram na sua vida comunitária a ligação com Deus.

Percebemos, pois, que a configuração feita pelos pobres na Igreja que junto deles se estrutura torna-se perceptível na maneira em que: celebram os sacramentos, assumindo o sinal como festa da vida, na forma como fazem a leitura da Palavra de Deus, reconhecendo nela a sua realidade de dor e o rosto de um Deus que caminha junto e liberta e nos cânticos que nos entoam mais diversos momentos celebrativos, que revigora a força de estar lutando por um novo céu e uma nova terra (Cf. Ap 21,1).

A fé faz com que os pobres se neguem a entregar-se ao acaso. Converter as estruturas neste conceito de rocha viva (1Pd 2,5a) é saborear a utopia do Reino que “lhes foi preparado deste a criação do mundo” (Mt 25,32).

CONCLUSÃO

Nossa intenção ao escrever o presente artigo foi demonstrar, mesmo que não profundamente, de que forma a Igreja dos pobres é fundamento para a teologia da libertação. Levamos em conta a problemática que decorre da particularização existente neste modelo de Igreja para explicitar que é um requisito estritamente evangélico. Percorremos do Vaticano II à sua influência na Igreja da América Latina, que desenvolveu suas reflexões próprias, para enfim, demonstrar que essa opção pelos pobres não recai em um erro de ortodoxia, pelo contrário demonstra a fidelidade mais singular de uma Igreja que caminha nos passos de Jesus de Nazaré.

Neste artigo realizamos um pequeno ensaio de reflexão com o sentimento de percorrer os caminhos já trilhados por muitos. Acreditamos que a Tradição de uma Igreja sempre viva não se coloca jamais longe dos pobres desta terra. Demonstramos, aqui, a nossa convicção na Igreja Una, Católica, Apostólica e dos Pobres… É com e por eles que somos a Igreja de Cristo, do Ressuscitado!

[…] Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu filho não fique em palavra, não fique em aplauso. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem. Claro que dirão, Mariama que é política, que é subversão. É Evangelho de Cristo, Mariama […]. (D. Helder Câmara, 1982).

RESUMO:

Dentre as mais diversas correntes teológicas existentes, surge em um contexto posterior ao Concílio Vaticano II, uma forma nova de se fazer teologia e de se compreender o modo de ser Igreja. A Teologia da Libertação na América Latina, nasce por uma abertura no modo de reflexão intraeclesial do ser Igreja e em um contexto social de opressão e libertação. Surge neste período uma Igreja profética que começa a desenvolver sua prática pastoral e sua reflexão teológica a partir dos últimos de Javé. O objetivo deste trabalho é avaliar o que significa ser de fato uma Igreja dos Pobres e como se deu o desenvolvimento desta vertente teológica a partir de uma hermenêutica latino-americana.

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VIGIL, José Maria [org.]. Descer da Cruz os Pobres: Cristologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2007.

Notas:

(1) Pode-se constatar na obra de: KLOPPEMBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II,Vol V, Quarta sessão. Vozes, 1966.

(2) Para mais informações ver em: BEOZZO, José Oscar. Nota sobre os participantes da Celebração do Pacto das Catacumbas.

(3) Tem-se como marco principal da teologia da libertação, o livro de: Gustavo Gutierrez.Teologia da Libertação.Petrópolis, Vozes, trad. Jorge Soares, 1976.

(4) Pode-se aprofundar nesse sentido no livro de: BOFF, Leonardo. Teologia do Cativeiro e da Libertação. São Paulo: Vozes, 1980.

(5) Surgem sindicatos, movimentos populares, associação de moradores, de mães, etc.

(6) Podemos lembrar de Bartolomeu de las Casas ( o protetor dos índios) e dos mártires da América Latina que conscientes da necessidade de “fazer acontecer” o Reino, doaram suas vidas através dos mais diversos modos.

(7) Para maior aprofundamento vide a reflexão feita em: BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja. Record, 2008.

Este trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Francisco de Aquino Junior