João Batista Libanio: “A morte não deve ser o critério de leitura…”

IHU – Unisinos

Nestes dias de celebração da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, a esperança que nasce da pessoa de Jesus frente ao mal e à morte é um convite a fazermos uma nova leitura da realidade. E em Jesus podemos encontrar a força e a confiança necessárias para superar e vencer o mal que ainda existem em nossa sociedade.

Para o Pe. João Batista Libanio, a Páscoa é um momento central para se compreender que cada situação concreta da vida desperta uma maneira diferente de se entender o amor de Deus. Em entrevista concedida por telefone, Libanio afirma que “toda situação humana é um jogo dialético entre vida e morte”.

Nesse sentido, “a Ressurreição quer dizer que a vida é mais importante do que a morte, e que, portanto, a morte não deve ser o critério de leitura dos acontecimentos”, afirma o doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

João Batista Libanio é padre jesuíta, escritor, filósofo e teólogo. É também mestre e doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de diversos livros, dentre os quais “Teologia da revelação a partir da Modernidade” (5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), “Qual o caminho entre o crer e o amar?” (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e “Qual o futuro do Cristianismo” (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).

Confira a entrevista:

IHU On-Line – O que o tempo pascal convida os cristãos a fazer ou a refletir sobre o mundo e a Igreja de hoje?

João Batista Libanio – Todo momento litúrgico tem uma peculiaridade. O momento da Quaresma foi um momento especialmente penitencial, de conversão e de revisão das nossas estruturas. E a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) apresentou esse problema muito grave da segurança e da paz, não para que nós os esqueçamos, mas para que continuemos a cultivar e a tentar encontrar soluções para essas duas questões.

Agora, a Páscoa já quer olhar o aspecto de esperança que se realizou na pessoa de Jesus: quer dizer, essa luta contra o mal, essa luta contra a morte, essa luta contra tudo o que há de perverso na sociedade termina com a vitória da ressurreição. Portanto, a última palavra não vem do mal, mas vem da salvação. Isso nos dá muita esperança, muita confiança.

Eu diria que a Ressurreição é uma grande experiência filial, por assim dizer, usando um conceito bem atual de cuidado e de ternura. Assim como a mãe cuida do seu filho pequenino e cria uma condição básica de confiança, saber que o Senhor Jesus, que nos amou e se entregou por nós, venceu a morte e todos os males nos dá uma confiança muito profunda, de que também nós, com a força dele, temos condições de ir vencendo e trabalhando contra o mal que impera na sociedade.

IHU On-Line – Como a paixão de Cristo se expressa na “paixão” do mundo e da Igreja hoje?

João Batista Libanio – Gosto muito da ideia de Jon Sobrino que fala dos povos crucificados. Até então, a reflexão olhava mais as pessoas enquanto indivíduos, isto é, uma mãe que perde o filho, o esposo que perde a sua esposa, uma situação de desemprego etc., sempre em uma condição de sofrimento. E aí temos uma palavra de esperança, porque o Senhor Jesus foi aquele que assumiu o sofrimento humano até o extremo.

Agora, podemos ampliar esse horizonte para o aspecto social. E não o sofrimento do indivíduo, mas o sofrimento de classes, de regiões, de países, e até de fenômenos, como agora na Itália, em Aquila, com o terremoto que fez muita gente sofrer. Nesse sentido, a vida humana traz sofrimentos coletivos. E, nesses momentos, nós gritamos, como Jó perguntando a Deus: como isso é possível?

Um ateu dizia que, enquanto uma criança inocente sofrer, todos os argumentos para a existência de Deus são inúteis. Outro dizia que um escândalo contra Deus é o sofrimento. Ora, isso seria correto se fosse um Deus distante, um Deus que ficasse fora, o famoso Deus de certas religiões, um Deus ocioso, como dizem os antigos. Mas nós sabemos que o nosso Deus não ficou fora da história humana. Ele entrou nela, e isso mostra que Ele está ao lado não só dos indivíduos, mas também dos povos. E pode prometer a eles essa esperança, que começa agora, pela presença, pelo carinho, pelo amor. Eles não são desprezados de Deus, mas sim amados de Deus, mesmo nas condições tão desprezadas em que estão.

IHU On-Line – Qual a sua avaliação dos chamados “erros de governo e comunicação” de Bento XVI (caso dos lefebvrianos, o aborto da menina do Recife, a questão dos preservativos na África)?

João Batista Libanio – Temos que perceber que hoje estamos numa situação bem diferente. Antes, a Igreja tinha muita liberdade para tomar posições internas sem que as repercussões fossem para fora do nosso âmbito e, portanto, para âmbitos que desconhecem a regra interna da Igreja.

Suponhamos que um clube de futebol tome uma medida respectiva a um jogador por ser um problema interno do clube. Disso, ninguém iria reclamar em tempos antigos. Hoje, isso sai na imprensa, e a pressão sobre o técnico, sobre o diretor do clube é tão grande que eles ficam sem saber o que fazer. Se isso vale para um clube, isso vale muito mais para a Igreja que é universal. Então, uma medida que seria puramente interna, por exemplo celebrar a missa em latim ou celebrar a missa em português, não tem nada a ver com a política de Obama, nem de Lula, nem com os interesses do Estado de São Paulo.

Mas hoje não. Hoje todas essas medidas têm uma repercussão social muito grande. E talvez isso não seja suficientemente levado em conta nos mundos mais burocráticos, porque ficam muito fechados entre si, e só percebem que o incêndio começou depois que o fogo já está muito alto. Então, tenho a impressão de que falta, talvez, uma certa assessoria mais sensível às repercussões midiáticas de medidas até justas e dignas no interior da Igreja, mas que hoje não podem ser tomadas sem mais, porque as repercussões são muito graves, e isso faz com que a imprensa selecione esses pontos escuros da vida do Papa e crie uma imagem muito escura dele, que não corresponde talvez à verdade.

Isso me faz lembrar de um fato de um psicólogo que um dia levou a um auditório uma folha branca enorme e colocou um pontinho preto no meio e perguntou às pessoas o que elas estavam vendo. E o pessoal gritou: “Um pontinho preto”. E ele perguntou: “E a folha branca, vocês não veem, não?”. É um pouco isso o que está acontecendo no pontificado do nosso papa. Eles escolhem os pontos escuros e fazem toda uma pintura escura, porque somam todos os pontos escuros e esquecem todas as outras coisas positivas. Agora, uma assessoria melhor ou mais sutil poderia evitar talvez esses equívocos, que acabam difamando a Igreja e também dificultando ou escurecendo a imagem do Papa.

IHU On-Line – Como os cristãos católicos podem entender e assimilar essas situações à luz da Páscoa?

João Batista Libanio – Eu acho difícil, não porque os cristãos sejam melhores ou piores, mas porque a cultura atual envolve a todos nós. Nós vivemos em uma cultura de muita autonomia, de muita liberdade, de uma enorme possibilidade de oferecer e de receber informação. Então, esses atos adquirem uma tal grandeza que as pessoas normais são afetadas.

Não podemos exigir heroísmo das pessoas. Jesus mesmo suportou tantas críticas. Muitas vezes teve que ficar calado diante de Herodes, de Pilatos. Agora, a massa, o grande povo não é santo. Ele reage conforme a cultura. Nós podemos incentivar para que haja uma maior profundidade espiritual, mas não podemos evitar que a grande massa responda conforme a cultura do momento, porque essa é a nossa condição humana.

IHU On-Line – O que o sofrimento e a solidão de Jesus na cruz podem nos ensinar hoje, em nossa realidade, sobre quem é Deus?

João Batista Libanio – A solidão de Jesus tem duas faces. É o silêncio, que aparece na reza daqueles salmos – “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” -, mas também a face do “Senhor, em tuas mãos eu entrego o meu espírito”. Quer dizer, Jesus sentiu, claro, essa solidão, mas ao mesmo tempo – e isso é muito difícil de entendermos -, sentiu uma imensa confiança, uma total confiança no amor do Pai que não o abandonava e não o abandonou minuto nenhum, instante nenhum.

Ele não morreu desesperado, como muitas vezes a gente diz, nem abandonado. Ele morreu envolvido pela experiência profunda de acolhida de Deus Pai, a quem disse “Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito”. Entregar o espírito tem o sentido de morte, de entregar para nós o Espírito Santo, como é a interpretação de João. Ele, na cruz, nos ajuda a fazer essa dupla experiência. No momento de silêncio, de vazio da nossa vida, tentar pensar naqueles outros momentos em que somos envolvidos por muito amor, por muita ternura, seja de pessoas humanas – nossos pais, nossos amigos, ou outras pessoas que estiveram presentes em nossa vida -, seja sobretudo pela certeza absoluta de que Deus, que nos cria e nos chama para o amor, continua nos amando e nos criando, porque a criação não é um ato solto, mas é um ato permanente.

João coloca Maria ao lado da cruz – mesmo que isso não tenha sido histórico, mas isso não tem muita importância para a reflexão teológica. Então, Jesus também foi envolvido pelo amor materno. Ele sabia que podia confiar, porque o amor que o criou como mãe e o amor cuidadoso de José lhe deram uma solidez, uma base de confiança fundamental humana muito grande. E isso também aparece na cruz, na relação com a mãe. Jesus mostra essas duas confianças básicas para a nossa vida, a dos nossos pais e mães – a confiança tutelar – e a de Deus. Essa solidão de Jesus mostra, ao mesmo tempo, esse abandono no amor que o envolvia e mostra que também nós, nesse momento de solidão, temos alguém nos ama e nos encobre: tanto pessoas humanas como o próprio Deus.

IHU On-Line – Como é possível apresentar os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo em uma linguagem compreensível à modernidade?

João Batista Libanio – Tenho a impressão de que podemos trabalhar a linguagem simbólica, eu diria, tomando uma certa distância daquele famoso filme, “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, que é todo cheio de sangue. O mundo de hoje gosta muito de ver os fatos de uma maneira cruel: quanto mais sangrento melhor. Eu tenho a impressão que não é por esse viés que deveríamos caminhar. Não é aumentando o realismo da Paixão de Jesus, colocando mais sangue, mais cruz, mais espinhos, mas de uma forma simbólica. Não que o sofrimento não tenha sido real, mas simbólico no sentido etimológico da palavra, isto é, uma realidade visível que nos mostra uma realidade invisível.

Esse visível do sofrimento de Jesus não é o fim, não podemos para nele. Ele aponta para uma outra realidade maior, e é essa outra realidade maior que é mais importante, que é, no fundo, a revelação da ternura e do amor infinito de Deus. Se conseguirmos falar disso, conseguiremos entender uma mãe que passa um mês inteiro dormindo mal cuidando de um filho. Ninguém deseja que as pessoas durmam mal um mês inteiro, mas a mãe passa por isso, sobre esse amor que é enorme.

Agora mesmo, em Belo Horizonte, conheci um pai que trabalha no Tribunal, cuja filha passou dois meses na UTI, e ele passou praticamente todo o tempo ali perto. Um homem que emagreceu, que ficou quase esquálido. Ninguém deseja isso para ninguém. Mas de fato ele fez, porque a filha estava entre a vida e a morte. Foi um sinal de amor. Acho que isso quase todas as pessoas entendem, e não só entendem, mas também praticam. Portanto, não é só Jesus que fez isso: quantos pais, quantas mães, mesmo as enfermeiras que cuidam dos velhinhos aqui em casa. E eu digo para elas: “Vocês são verdadeiros sacramentos do amor de Jesus”. Eu acho que é nesse sentido que a Paixão de Jesus é bonita.

IHU On-Line – Como pode se estabelecer uma ponte de ligação entre o mistério da fé cristã e a contemporaneidade?

João Batista Libanio – A fé é a acolhida de uma palavra revelada. E ela pede de mim conversão e compromisso. São as três dimensões fundamentais, para mim, da fé. Então, existe a Palavra revelada de Deus, que não é só a que está na Escritura, mas é aquela que está na Escritura lida e interpretada ao longo dos séculos. Essa palavra está nos provocando continuamente. Para quê? Para que nós a interpretemos.

Porém, nós só podemos interpretá-la dentro da contemporaneidade, com os problemas que nós temos das relações com as outras religiões, do feminismo, da fome no mundo etc. Acolhendo a palavra, ela pede que eu me converta, para ver como eu vou vivê-la dentro desse mundo concreto, que foi uma tentativa que [a V Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano e do Caribe de] Aparecida quis fazer. Ela disse que é importante o encontro pessoal com Jesus, a conversão e o ser missionário.

É a partir daí que temos que perguntar o que essa situação concreta provoca em nós. Cada situação concreta desperta uma maneira diferente de se entender o amor de Deus, que é universal, e que, agora, se encontra nessa situação bem definida, bem determinada.

IHU On-Line – Como os sofredores e os marginalizados do mundo, especialmente dentro da própria Igreja, podem experimentar a Ressurreição?

João Batista Libanio – Só por meio de pastorais concretas que pensem neles. Isto é, por meio de gestos. Do contrário, vamos ter um discurso abstrato e genérico. E os gestos têm que ser físicos e concretos, que as nossas pastorais, portanto, levem a sério e coloquem o problema social como centro de organização.

Se o Apostolado da Oração, a Renovação Carismática, movimentos que são muito bonitos dentro da Igreja, não tiverem nenhum envolvimento com esse mundo social, se não forem um sinal e uma presença desse amor de Deus para essas pessoas, eles não estarão realizando aquilo que é mais profundo no cristianismo. Isso nós temos que dizer com todas as letras. Já dizia São Tiago: sem atos, sem ações, a fé é morta.

Então, uma fé bonita, cantada, perfumada e incensada só mostra a sua validez e a sua força no momento em que tenha a caridade e o amor, como em Mateus 25: “Tive fome, tive sede, estava nu, estava preso e me socorrestes”. Todo o cristão tem que perguntar: como eu estou vivendo a minha fé em relação àquelas pessoas que sofrem? Mas de uma maneira real, concreta, que seja a presença amorosa, respeitosa, digna de Deus em relação aos pobres.

IHU On-Line – A partir da Páscoa, quais são os desafios e as esperanças que o Cristo morto e ressuscitado apresenta ao mundo de hoje?

João Batista Libanio – A Páscoa é a vitória sobre a morte e sobre o mal, e não só em um sentido físico, mas todas as mortes que existem na Terra e as pequenas mortes de cada um de nós, como um matrimônio que rompe, por exemplo. Então, se esse casal ficar desesperado, vai ter que encontrar no Ressuscitado uma força para reconstruir a sua vida. Os filhos continuam aí, e eles precisam do carinho dos dois, e como eles vão trabalhar isso?

Portanto, se tomarmos cada situação humana, vamos perceber que toda situação humana é um jogo dialético entre vida e morte. E a Ressurreição quer dizer que a vida é mais importante do que a morte, e que, portanto, a morte não deve ser o critério de leitura dos acontecimentos.

A propaganda nos dá a ideia de que o mundo de hoje é só de morte, de crimes, de misérias. Para cada jovem americano que metralha os seus companheiros, existem milhões de jovens que não fazem isso e que vão à aula, brincam, jogam. Nós criamos uma imagem terrível da humanidade, e parece que a morte está vencendo. E a Ressurreição quer dizer “não”.

Para cada mãe que mata a sua criança, para cada padrasto, como aquele no Recife, que prostitui e viola a sua afilhada, existem milhões de mães, milhões de padrastos, milhões de pais que são ternos, que são carinhosos. Acreditar que existe essa vitória do bem em cada momento em que lemos os fatos maus é que é a grande lição da Ressurreição.

Gostaria de deixar a minha mensagem de esperança para um mundo tão desesperançado. E que não nos deixemos dominar por uma mídia sensacionalista, para a qual praticamente só existem notícias de corrupção, de sexo violento, de violência dos assaltos e que esquece que o mais bonito da humanidade é a convivência entre os seres humanos.

(Reportagem de Moisés Sbardelotto)

Um Comentário

  1. Cristina Coluccini
    abr 05, 2010 @ 19:01:04

    Foi de grande ajuda estas perguntas e respostas! Precisamos de informações seguras, coerentes e sérias.
    Obrigada.