O Caim de Saramago e a violência na Bíblia

Maria Clara Lucchetti Bingemer

É na história primeva que podemos encontrar o início da trajetória da violência na Bíblia e mais diretamente no relato de Caim e Abel, em Gênesis 4. No texto, Caim é o primeiro homem nascido. É recebido por Eva como dom de Deus. É à Sua benevolência que a primeira mulher deve a maternidade. É a primeira experiência de maternidade no mundo, o que vem modificar a condição feminina tornando-a, mais do que serva e companheira de um marido, capaz de ser mãe dos seres humanos.

O texto bíblico apresenta a seguir os dois irmãos, Caim e Abel, com ocupações diferentes. Caim está ligado à prática agrícola e Abel à pastoril. Esta diferença de atividades vai caracterizar uma diferença de atitudes, pois no desenvolvimento de sua vocação individual, o ser humano cria perspectivas próprias a partir de sua experiência com o meio. No caso do relato bíblico, Caim e Abel, irão demonstrar práticas religiosas também diferentes, o que pode indicar óticas diversas no âmbito religioso-moral, em consequência das próprias atividades desenvolvidas. A divisão em duas funções distintas, conduz também para distintos sacrifícios, para distintas práticas religiosas. Cada culto pertence a uma cultura. São, portanto, dois altares e dois cultos.

Os versículos 4b e 5 nos contam que Iahweh reage diferentemente às ofertas dos irmãos. No entanto, não deixa clara a razão desta rejeição divina à oferta de Caim. É nesta incompreensibilidade da atitude divina que radica o último romance do escritor português José Saramago, intitulado “Caim”.

Neste novo romance, Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação. Para atravessar esse caminho árido, Deus colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, sozinho montado em um altivo jegue e o enviará mundo afora, “errante sobre a terra”, maior maldição para o homem bíblico que buscava ansiosamente a sedentarização. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e, portanto está protegido das iniquidades humanas, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos.

O tema dos irmãos inimigos realmente convida a olhar as expressões deste relacionamento. Caim, sentindo-se inferiorizado em relação ao irmão mais novo, se fecha e se deixa invadir pelo ódio contra seu irmão.

Em Caim aparece o desejo mimético na sua forma mais perversa: convertido em inveja, em ressentimento e, finalmente, em ódio. O desejo mimético conduz Caim a escapar à alteridade que parece dividi-lo, dilacerá-lo. Procura assim, anular as diferenças, eliminando-as. O desejo mimético reduz o outro a si mesmo, quer moldar o outro à sua própria imagem, recusa a diferença encontrada, nega a alteridade e o diálogo profícuo que advém de uma atitude de abertura à diferença como dom e como condição de ser pessoa, dialogicamente configurada.

Assim como Adão e Eva, Caim não aceita a soberania divina, recusa-se a obedecê-la, e faz de si mesmo, um deus. A alteridade é negada em Caim, tanto na pessoa de Abel como na obediência ao mandato divino. Caim se torna um idólatra, escapa ao seu fundamento que reside no Outro, na abertura à alteridade. “A idolatria provoca uma cisão no próprio homem, a qual o faz implodir”, perder sua soberania com relação à Criação. Caim se torna desumano, age como animal indomável, sua soberania se transforma em violência e despotismo.

No texto bíblico encontra-se um diálogo entre Deus e Caim. Iahweh exorta Caim a dominar o pecado – que está à espreita -, a modificar sua atitude, seu “semblante abatido”. Aqui se desenvolve o drama íntimo entre Caim, Deus e a consciência, o drama de todo o ser humano. O pecado está à porta e sempre desejoso de dominar mais e mais o pecador, até que este, vigilante, possa dominá-lo por último.

A orientação divina exorta Caim a reconhecer, em sua atitude, uma exposição favorável à disseminação do pecado, e tomando essa consciência, modificá-la a tempo, através da confiança em Deus e da fraternidade. Como no relato da Queda, não é Deus que tenta, mas é o próprio homem que se deixa atrair e seduzir pela cobiça. Esta dá à luz o pecado e, este, gera a morte. Na decisão de Caim, de escutar o pecado – à espreita – reconhecemos o dilema de todo ser humano, de toda a sociedade: deixar que o pecado avance ou dominá-lo?

A revolta de Saramago contra um Deus que ele acusa de ser autor intelectual do assassinato fratricida mostra bem como essa disputa está enraizada no fundo mais profundo do coração humano.

O que Saramago se esquece de dizer é que Deus não “imita” Caim. Ou seja, não o mata, mas ao contrário, marca-o na fronte para que não lhe seja feito mal. No fundo do violento relato do fratricídio que marca a história humana, a presença do Criador se revela como de misericórdia e perdão, e não de vingança. Eis aí algo que o Caim de Saramago não mostra e não reconhece. Por isso seu romance, por genial que seja literariamente, padece de certa unilateralidade lastimável. Deve ser lido… e discutido…com abertura e lucidez…mas sempre com honestidade.

4 Comentários

  1. alexandre nunes
    nov 26, 2009 @ 12:05:52

    Muito boa esse paralelo entre o fato bíblico e a ficção de Saramago… eis uma boa dica para quem quer me dar um presente de natal: Caim, de josé Saramago

  2. alexandre nunes
    nov 26, 2009 @ 12:07:07

    ops… erro de concordância: muito bom esse paralelo….

  3. danilo santana
    nov 28, 2009 @ 07:50:04

    28/11/2009 – Sábado

    São Tiago da Marca

    O santo de hoje morreu dizendo “Jesus, Maria, bendita paixão de Jesus”, isto porque sua vida toda foi dedicada para a causa do Evangelho. Tiago da Marca nasceu no ano 1391 numa aldeia da Marca de Ancona, Itália. Recebeu no Batismo o nome de Domingos. Tendo morrido seu pai e sua mãe, ficou aos cuidados de um homem rico que o encaminhou para trabalhos administrativos. Desta forma, São Tiago conheceu a iniquidade do mundo, tomando a decisão de se retirar para um convento.
    Quando despertou para a vocação à vida Consagrada, São Tiago pensou em entrar para os Cartuxos, mas ao viajar para Babiena, na Toscana, ficou tão edificado com os diálogos que travou com os franciscanos, que resolveu entrar para a Família de São Francisco de Assis. Recebeu o hábito, tomando o nome de Tiago, no Convento de Nossa Senhora dos Anjos, perto de Assis, onde, pouco tempo depois, fez profissão.
    Dormia apenas três horas por noite; e passava o restante da noite na meditação das coisas celestes. Nunca comia carne, jejuava inviolavelmente as sete quaresmas de S. Francisco. Todos os dias se disciplinava com rigor. A única pena que sentia era não poder dedicar-se à pregação, único emprego que desejava na sua Ordem. Para conseguir o que tanto desejava, foi a Nossa Senhora do Loreto, celebrou a Santa Missa e, depois da consagração, a Santíssima Virgem apareceu=lhe a dizer que a sua oração tinha sido ouvida.
    Começou a pregar com tanto fervor que nunca subia ao púlpito sem tocar os corações mais endurecidos, fazendo muitas conversões miraculosas. Foi associado a São João Capistrano para pregar a Cruzada contra os turcos que, tendo-se apoderado de Constantinopla, enchiam de terror toda a cristandade. Foi tal o seu zelo por esta ocasião que se lhe pode atribuir em grande parte o sucesso desta gloriosa empreitada.
    Como sacerdote dedicou-se nas pregações populares onde, de modo simples, vivo e eficaz, evangelizava e espalhava a Sã Doutrina Católica em diversas regiões da Europa.
    São Tiago anunciava, mas também denunciava toda opressão social, pois os negociantes e mercadores tiranizavam o povo com empréstimos de juros sem fim, por causa disso o santo fundou os bancos populares que emprestavam com juros mínimos.
    Por fim, São Tiago se instalou em Nápoles onde teve a revelação que aí terminaria seus dias, como de fato aconteceu a 28 de novembro de 1476, isto depois de ser atingido por uma doença mortal.
    Foi canonizado em 1726 pelo Papa Bento XIII.

  4. Carla
    jun 04, 2010 @ 20:44:46

    Li seus textos e gostei muito. Alto nível e coerência !!!!!!