Palavra que chama e faz ser

José Lisboa Moreira de Oliveira

Aqui no Brasil, já faz um bom tempo, o mês de setembro é “o mês da Bíblia”. Os liturgistas, de um modo geral, não gostam disso. Eles acreditam que esses meses temáticos costumam desviar a atenção das pessoas das propostas da liturgia dominical, particularmente dos temas propostos pelas leituras bíblicas de cada domingo. Não tiro a razão dos liturgistas, embora acredite, também por experiência própria, que seja possível conciliar as duas coisas. Creio, porém, que o mais grave nessa história toda, especialmente no que diz respeito ao mês da Bíblia, é saber que na Igreja Católica são necessários meses temáticos para despertar as comunidades para dimensões tão essenciais da vida cristã como, por exemplo, a vivência da Palavra, a vocação e a missão. Elas e cada um dos seus membros deveriam viver tais dimensões de forma bem espontânea e natural.

Aproveitando, então, do mês da Bíblia quero propor uma reflexão sobre a relação profunda que existe entre Palavra de Deus e Vocação. O Concílio Vaticano II não só nos devolveu o acesso à Palavra como também deixou bem claro que a Palavra de Deus é palavra que chama, convoca e reúne a comunidade dos chamados e das chamadas.

O Concílio nos devolveu a Palavra porque, infelizmente, durante quase um milênio, o povo católico ficou impedido de ter acesso direto à Bíblia. Essa tinha se tornado propriedade particular da hierarquia. O povo não lia a Bíblia. Por essa razão uma das grandes revoluções provocadas por Lutero, na Reforma do século XVI, foi a tradução da Bíblia para o alemão, a língua falada por seus patrícios. Por ocasião da realização do Vaticano II (1962-1965) a situação era ainda tão crítica que o referido Concílio teve de fazer a seguinte afirmação: “É preciso que os fiéis tenham amplo acesso à Sagrada Escritura” (DV, 22). Em seguida recomendava que se fizesse “traduções esmeradas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos Livros Sagrados”. Quase na conclusão da Constituição sobre a Revelação Divina o Concílio volta a insistir sobre a importância da leitura assídua da Bíblia, do contato íntimo com as Escrituras e do estudo profundo da Palavra. Cita, então, uma afirmação atribuída a São Jerônimo: “Desconhecimento das Escrituras é desconhecimento de Cristo” (DV, 25).

O Vaticano II também explicitou a relação entre Palavra e Vocação ao deixar bem claro que os desígnios divinos a respeito da salvação da humanidade e de cada pessoa foram manifestados plenamente na Revelação, cujo ápice é a pessoa de Jesus Cristo (DV, 2). As Escrituras Divinas, por ser “palavra do próprio Deus” (DV, 21), manifestada numa linguagem humana (DV, 13), nos fazem ouvir a voz do Espírito (DV, 21). Portanto, uma Palavra que chama, que convoca. A partir dessas indicações do Concílio Vaticano II os documentos e textos vocacionais posteriores irão destacar a relação profunda entre Palavra de Deus e Vocação. O Documento Conclusivo do 2º Congresso Internacional das Vocações, realizado em Roma no ano de 1981, fez uma síntese dessa questão usando os seguintes termos: “A Palavra de Deus tem relações profundas com cada vocação. É Palavra que chama e que faz ser. Todo encontro com a Palavra de Deus é um momento propício para a proposta vocacional. O crente, que se deixa penetrar pela Palavra de Deus, adquire uma nova consciência da sua própria vocação; permanece em diálogo com Deus; sente-se interpelado com força; descobre caminhos mais empenhativos, em ordem a cooperar com o Senhor Jesus para o advento do Reino” (nº 25).

Porém, essa relação entre Palavra e Vocação não é algo mágico e milagroso. Infelizmente, hoje, passamos para um outro extremo. Vendem-se pilhas e mais pilhas de bíblias. Grupos fundamentalistas transformaram a Bíblia em desodorante: levam-na debaixo do braço para qualquer lugar. Bíblias são vistas até mesmo em cima de vasos sanitários! Entre os grupos conservadores católicos aqui no Brasil a tradução da Bíblia mais usada é a pior que existe, feita antes do Vaticano II, sem aqueles critérios de tradução estabelecidos pelo próprio Concílio. Nesses grupos há uma leitura fundamentalista da Palavra, onde as Divinas Escrituras são distorcidas e lidas de qualquer jeito. Não há interpretação da Bíblia, dos seus modos diferentes de se expressar, como quis o Vaticano II (DV, 12). Passou-se da veneração das Escrituras (DV, 21) para a pura e simples idolatria do livro da Bíblia, desacompanhada das explicações necessárias e verdadeiramente indispensáveis para um autêntico conhecimento da Palavra (DV, 25). Usa-se a Bíblia para tudo, inclusive para se falar as maiores baboseiras e asneiras.

De que modo, então, a leitura, a meditação e o estudo da Palavra se tornam interpelação, provocação e convocação de Deus? De que modo a leitura da Bíblia pode se tornar uma leitura vocacional, possibilitando ouvir de modo claro o chamado divino?

Antes de tudo, e sem dúvida alguma, quando essa leitura é feita a partir do chão da realidade. Isso porque, como nos lembra muito bem o Guia Pedagógico de Pastoral Vocacional (Paulus, 1983), Deus chama através dos fatos e dos acontecimentos da vida e da realidade (pp. 22-23). Assim sendo, uma leitura desencarnada da Bíblia, sem ligação com a história e a realidade, não leva a um discernimento vocacional. Quanto a isso é preciso muita atenção neste momento, pois o atual contexto social e eclesial não nos ajuda a fazer esse tipo de leitura. Como nos tempos do jovem Samuel também hoje “a palavra do Senhor é rara” e as “visões”, isto é, a capacidade de lê-la a partir da história, não é muito freqüente (1Sm 3,1). Por isso muita gente lê a Bíblia e continua insensível aos apelos divinos, uma vez que faz tal leitura completamente desconectada da história, da vida concreta.

Hoje é muito comum ver pessoas, inclusive jovens, carregando a Bíblia o tempo inteiro e, ao mesmo tempo, andando como tontas para lá e para cá, sem saber o que, de fato, querem da vida. Não recebem a revelação da palavra do Senhor (1Sm 3,7) porque vivem sonolentas, desconectadas da vida concreta. São exageradamente religiosas, passando o tempo todo “deitadas no Templo” (1Sm 3,4), mas incapazes de perceber os apelos de Deus, tão gritantes a ponto de fazer “tinir os ouvidos” (1Sm 3,11). É que tais apelos só podem ser ouvidos a partir do momento em que o vocacionado ou vocacionada se liga de verdade com a história real dele e dela e da humanidade.

Por esse motivo, uma segunda exigência para a leitura vocacional da Bíblia é a participação na vida de comunidade. Não basta ler a Bíblia por conta própria. É indispensável fazer uma leitura comunitária, em mutirão, deixando-se interpelar pelas vozes de outras pessoas. De fato, como afirma o Guia pedagógico de pastoral vocacional, é na comunidade “que os apelos concretos são sentidos, é na comunidade que se encontram os caminhos de canalização da resposta” (p. 53). Quem não se coloca em sintonia com outras vozes e outras interpretações, corre o risco de ler a Bíblia de cabeça para baixo, ou seja, de não entender absolutamente nada daquilo que ela propõe e pede.

Isso quer dizer que uma leitura vocacional da Bíblia supõe um discípulo ouvinte, uma pessoa que escuta, que se deixa interpelar (Is 50,4-5). Não pode ouvir o chamado divino a pessoa que lê a Bíblia já com a intenção explícita e com a pretensão de que a Palavra diga o que ela quer ouvir. Precisamos ler a Bíblia completamente desarmados, numa atitude de escuta total. De acordo com o Guia Pedagógico de Pastoral Vocacional, a escuta é a primeira atitude do vocacionado ou da vocacionada. Escuta-se Deus, procura-se entender os apelos de sua Palavra e esse gesto nos permite olhar a vida com realismo e com profundidade, nela reconhecendo os sinais do chamado divino (pp. 43-44). Trata-se de uma leitura bíblica na qual o vocacionado ou a vocacionada não fala e não diz a Deus o que quer. Apenas coloca-se numa atitude de total sintonia: “Fala, o teu servo escuta” (1Sm 3,10). Porém, para sintonizar-se plenamente com a voz de Deus a pessoa vocacionada precisa conectar-se com a realidade, particularmente com a realidade do enfraquecido, de onde o Senhor “faz surgir uma palavra” (Is 50,4) que provoca, ou seja, que chama para a missão.

Disso nasce uma outra exigência que é o anúncio da Palavra. Para que a leitura e meditação da Palavra suscitem inquietação e provoquem uma resposta corajosa é indispensável que ela seja proclamada na catequese. É preciso fazer ecoar a Palavra no coração das pessoas, suscitando o desejo de acolher o chamado divino. De acordo com o Documento Conclusivo do 2º Congresso Internacional das Vocações, isso significa que nas comunidades cristãs deve existir uma sólida catequese capaz de realmente saber guiar as pessoas, “especialmente os jovens, a considerar a vida cristã como resposta ao chamado de Deus” (nº 25). O que, infelizmente, não acontece na quase totalidade das comunidades cristãs, uma vez que não existe um processo sério e permanente de formação catequética. O que existe na verdade são momentos fragmentados, pedaços desconectados e superficiais de “aulas de catequese” para a primeira comunhão, para a crisma e assim por diante. É muito difícil encontrar na Igreja Católica um itinerário catequético que, como queria João Paulo II, leve a pessoa do nascimento até a morte ao encontro profundo com Cristo que chama.

Por fim, é indispensável que os vocacionados e as vocacionadas sejam ajudados por uma Antropologia Vocacional capaz de levá-los a superar as resistências humanas aos apelos da Palavra. O próprio Jesus, na parábola do Semeador (Mt 13,3-23), deixa bem claro que tanto no coração humano como no interior dos “intestinos eclesiásticos” podem existir situações existenciais e estruturas capazes de impedir total ou parcialmente uma resposta generosa ao chamado. Assim sendo, seria mera ilusão pensar que seja suficiente colocar o vocacionado ou vocacionada em contato com a Bíblia para que ela perceba e responda ao chamado divino. Sem cuidar dessa dimensão antropológica da vocação, a simples leitura bíblica não resolve nada. A semente da Palavra será sufocada, esturricada, pela ausência de raízes humanas profundas (cf. Mt 13,6) que permitem à pessoa acolher com liberdade e responsabilidade os apelos divinos.

Conclui-se então que a relação entre Palavra e Vocação é real, profunda e essencial. Mas a conexão entre ambas não é um ato de mágica no qual um “palhaço” qualquer faz acontecer o que parece impossível. Mesmo que tais “palhaços” estejam revestidos de vestes religiosas ou clericais. Os que insistirem em continuar com suas “mágicas” serão mais tarde decepcionados quando os espectadores deixarem de ser infantis e perceberem que tudo não passa de um truque fajuto para arrebanhar pessoas e encher conventos e seminários. De fato somente aquele que ouve a Palavra e a compreende pode produzir fruto (Mt 13,23). Não esqueçamos de que os “mágicos” da animação vocacional só produzem ouvintes da Palavra que “se iludem a si mesmos” (Tg 1,22). E isso, hoje, é um sério problema, pois, em muitos lugares, a Igreja não passa de um mero palco na penumbra onde muitos palhaços fazem mágicas fajutas para iludir os fiéis! Falta a conexão entre Palavra e História, entre fé e vida, entre religião e solidariedade. Falta catequese séria e maior cuidado com a dimensão humana da vocação.