Saúde e salvação: duas irmãs inseparáveis

Maria Clara Lucchetti Bingemer

E chegou a Quarta-Feira de cinzas e parece que finalmente o ano vai começar. No Brasil, o Carnaval é o marco que finaliza a série de festas, férias e viagens iniciadas no Natal. O Carnaval é o selo que diz: “Ao trabalho”. Mas, para nós, que vivemos a fé em Jesus Cristo, diz algo mais: “Convertei-vos e crede no Evangelho”.

Ao receber a cruz feita de cinzas sobre a testa, milhares, milhões de católicos no mundo inteiro estão comprometendo-se a entrar num caminho de conversão, na penitência, na prática mais intensa da ascese e das virtudes, no deixar para trás os velhos hábitos e revestir-se dos novos em Cristo.

A Conferência dos Bispos do Brasil a cada ano procura marcar esse tempo qualificado de viver a conversão ao Evangelho com a Campanha da Fraternidade. Com um tema central e materiais diversos disponíveis para os fiéis refletirem e se aprofundarem é um serviço inestimável ao povo de Deus, para viver melhor e mais qualificadamente os 40 dias que o separam da Páscoa, mistério maior da sua fé.

Este ano o tema é a saúde. E pode-se pensar: o que tem a Igreja a ver com o tema da saúde? É algo que compete ao governo e à iniciativa privada. Com todo respeito, saúde é um dos temas mais teológicos que existem. E isso radica em sua própria etimologia. A palavra latina para dizer saúde é “salus” que se traduz por “salvação, conservação da vida”.

O tema da saúde nos conduz de maneira bela e profunda a entender o coração da nossa fé. Aprendemos no Catecismo que Jesus Cristo é nosso salvador, que veio nos trazer a salvação. Mas quantas vezes nossa compreensão do que seja salvação é algo meio curto e mecânico. Parece que Deus criou tudo bem, nós estragamos e o Verbo se encarnou para “remendar” nosso estrago.

Não é isso, não é só isso e graças a Deus é muito mais que isso! A Encarnação, centro indiscutível de nossa fé, é mistério de vida e vida em plenitude. Não foi apenas para reparar estragos ou lacunas que Deus enviou seu filho na plenitude dos tempos, nascido de mulher. Foi para revelar-nos que o desejo mais profundo desse Deus que Ele nos ensinou a chamar de Pai é conduzir-nos à vida e vida em abundância.

E essa vida abundantem, que jorra generosamente do coração de Deus, toca e integra todas as dimensões do ser: corporeidade, psiquismo, sensibilidade, espiritualidade. Não se trata, pois do fato de que cuidar da saúde física é algo material que não interfere nada com a saúde espiritual. Pelo contrário, todas essas dimensões devem ser cultivadas com igual carinho, dedicação, para que não sejamos pessoas hipertrofiadas em um dos pólos do ser e atrofiadas em outro.

Isso é mais importante ainda quando vivemos uma época que tem como obsessão certa concepção de saúde. O culto ao corpo, a malhação incessante nas academias e ginásios, a busca exaustiva pela forma perfeita, na verdade não conduz à saúde plena. Pelo contrário, leva à atrofia de outras partes do ser que ficam reduzidas e diminuídas. Não leva, pois à saúde plena, por mais que pareça o contrário.

Da mesma forma, o não cuidado do corpo, às vezes por negligencia própria, mas às vezes por não encontrar no atendimento público de saúde condições dignas e mesmo mínimas de manter a saúde, é desastroso.

A Campanha da Fraternidade enfoca todos estes aspectos. Não apenas deseja “disseminar o conceito de bem viver e sensibilizar para a prática de hábitos de vida saudável”, como também “despertar nas comunidades a discussão sobre a realidade da saúde pública, visando à defesa do SUS e a reivindicação do seu justo financiamento”.

Buscando uma saúde que se entenda não apenas, nem somente, nem principalmente como ausência de doenças ou como padrão estético, chega-se mais perto da salvação. Não é a-toa que o Evangelho nos mostra por muitas vezes Jesus muito próximo dos doentes, dando-lhes conforto e curando-os de suas enfermidades. Mas sua prática não se detinha aí. A partir da cura, ensinava-lhes que Deus, além de curar doenças, perdoa pecados; além de restaurar a saúde corporal, restaura também a totalidade da pessoa, reintegrando-a na comunidade para que possa louvá-Lo e servi-Lo plenamente.

Saúde e salvação são, portanto, duas irmãs inseparáveis. Não se busca uma sem buscar a outra, e não se alcança verdadeiramente uma sem, ao mesmo tempo e inseparavelmente, ser alcançado pela outra.