Violência estrutural, juventude e educação para a paz

Caio Andrade Bezerra da Silva

O século XX foi campo das maiores descobertas científicas da história. Foi nesse período que surgiu a fabricação de automóveis em massa, a televisão, o avião, o celular, o computador, a internet, a clonagem, etc. Mas a tecnologia, por si só, não foi capaz de solucionar os maiores problemas da humanidade. Exemplo disso é que “o número de pessoas que passam fome no mundo aumentou em 2008 para 963 milhões, contra 832 milhões registrados em 2007”.(1) Como se não bastasse, há cerca de 1 bilhão de analfabetos no planeta (2) e mais de 32% da população urbana mundial vive em favelas(3).

A aparente incoerência tem explicação: a tecnologia está subordinada à política, já que é na política que se decide o que será feito com as técnicas e quem terá acesso a elas(4). Nesse sentido, fica claro que as maiorias não têm conseguido participar das decisões mais importantes e, conseqüentemente, não tem sido possível colocar o “progresso” a serviço da garantia das necessidades e direitos básicos dos seres humanos. O Estado, que em tese deveria fazer prevalecer os interesses coletivos sobre os individuais, em geral tem funcionado mais como um balcão de negócios das classes dominantes.

Essa forma injusta de (des)organização econômico-social que só beneficia uma minoria precisa constantemente recorrer à opressão e à violência para se manter. Deste modo, a ciência, que deveria se preocupar principalmente com o bem-estar da sociedade, é apropriada no sentido de manter as bases do sistema capitalista, mesmo que para isso sejam necessárias desde teorias até bombas atômicas ou quaisquer outras sofisticadas formas de matar o máximo de pessoas em menos tempo possível.

Quanto mais o regime vigente se torna insustentável e insuportável, mais ele necessita apelar à violência para se conservar. É por isso que o sistema que oprime, explora e destrói a natureza, estando próximo de sua agonia final, como um animal acuado, parte para o ataque revelando seus instintos mais agressivos. Pode-se perceber esse processo na história e um exemplo concreto dele na escala global é a quantidade de mortos em guerras no século passado: foram 109.700.000 pessoas mortas somente em guerras, ultrapassando 4% da população mundial. Essa cifra nunca tinha atingido os 2%, considerando estimativas de população referentes ao meio do século(5).

Atualmente, as prioridades do orçamento mundial(6) (em dólares) têm sido as seguintes: 1º) Armamentos = 80 bilhões; 2º) Fumo = 40 bilhões; 3º) Publicidade = 25 bilhões; 4º) Cerveja = 16 bilhões; 5º) Vinho = 8,6 bilhões; 6º) Golfe = 4 bilhões. Enquanto toda essa farra acontece, apenas 3,4 bilhões de dólares seriam suficientes para satisfazer as necessidades elementares de saúde, educação e alimentação de todas as crianças do mundo (segundo a Unicef).

Contudo, a violência estrutural que submete a sociedade ao terror tem muitas outras formas mais sutis de se manifestar. A violência também está contida e contém preconceitos das mais diversas ordens (cor, religião, orientação sexual, classe social, etc.), dos quais acaba sendo causa e conseqüência. A diferença é vista como ameaça ou aberração e a desigualdade é aceita como algo normal, fatalidade inevitável.

Essa visão distorcida da realidade acaba sendo reproduzida pela escola, que vende “educação” como mercadoria. Aprisionados pela febre do vestibular, os espaços formais de ensino comumente reforçam a competição entre os estudantes e estes passam a se enxergar como adversários que disputam uma vaga na universidade e, futuramente, no cultuado mercado de trabalho. A escola, nestes moldes, funciona como uma forma que se aplica para homogeneizar aqueles que passam por ela, treinando-os para serem perfeitos reprodutores do sistema estabelecido.

Por isso, é cada vez mais comum ouvir falar em bullying(7). A consolidação da escola como um lugar de competição, exclusão e autoritarismo produz um ambiente favorável a práticas que constituem violência física e/ ou psicológica (que pode se originar em brincadeiras aparentemente inocentes, como colocar apelidos) entre os estudantes, gerando isolamentos, mágoas e traumas. Isso imprime sentidos bastante negativos ao processo educativo.

Em pesquisa realizada pelo Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae, a “violência social” foi apontada como o principal tipo de violência enfrentada nas escolas. O item foi o mais citado, na frente da violência física, sexual ou doméstica. “A questão mais presente e mais difícil de os educadores lidarem é a criança que chega desnutrida, que chega sem comida, que chega com a roupa rasgada”, declarou Dalka Chaves(8).

O oligopólio(9) dos meios de comunicação também se apresenta como uma das principais formas, se não a principal, de alienação. O direito à informação é diariamente desrespeitado pela mídia comercial, porque a informação é igualmente vendida como mercadoria, convertendo-se assim em desinformação. Nesse contexto, de acordo com o monge beneditino Marcelo Barros:
“Quem acompanha os noticiários no Brasil sabe como a maioria destes privilegia a violência. É como se informar significasse explorar incansavelmente e de modo insensível os crimes e doenças que atacam a sociedade. Uma criança que foi jogada de um edifício ou um filho que mata os pais proporcionam matérias para a repetição cotidiana de reportagens sensacionalistas, cenas chocantes e comentários infelizes, pelo menos por quinze dias. Até surgir um novo crime ou escândalo. Ao mesmo tempo, quase sempre continua forte uma campanha de criminalização dos movimentos populares e uma publicidade extremamente negativa de qualquer governo que, na América Latina, pretenda transformar a sociedade”.(10)

Por esses e tantos outros motivos, o modelo de sociedade que tem vigorado até hoje é decadente e sufocante para 80% da humanidade. Portanto esse quadro não pode durar por muito tempo e a juventude, na condição de mais prejudicada entre os prejudicados, tem um papel crucial no processo de transformação, não porque é futuro do planeta, mas porque agora mesmo, no presente, tem sido agredida diariamente pelas mais diversas faces dessa lógica perversa que eleva o lucro sobre a vida, prioriza o consumismo em detrimento do bem-estar, valoriza o individualismo e a competitividade contra a coletividade e a cooperação e, o que é pior, convence muita gente de que “não tem jeito mesmo, sempre foi assim e continuará sendo”.

Sendo a mais prejudicada entre os prejudicados, a juventude não pode esperar que alguém faça algo por ela ou para ela. Por mais que aconteçam ações em benefício da juventude que não tenham sido construídas e/ ou executadas por ela mesma, só se podem esperar mudanças efetivas se a própria juventude participar. E a participação não será concedida, ela precisa ser uma conquista, fruto da organização.

Inúmeros exemplos de conquistas que vieram da organização popular poderiam ser citados. Elegendo uma importante conquista latino-americana no campo da educação (já é senso comum que o combate à violência passa pelo investimento em educação), lembra-se: em 2008, a Bolívia alcançou a condição de território livre do analfabetismo, tendo sido o terceiro país da América Latina a fazê-lo. O primeiro foi Cuba, em 1961, e quatro décadas depois, a Venezuela, em 2005(11).

Entretanto, é evidente que os desafios pela frente ainda são enormes. Se a África é o continente mais pobre do mundo, a América Latina é a região (subcontinente) mais desigual. Assim, não é por acaso que “os jovens latino-americanos entre 15 e 24 anos são os que mais correm risco, em todo mundo, de ser assassinados”(12)(Luiz F. Gomes). E o Brasil, atrás de Colômbia e Venezuela, é o 3º país com mais assassinatos de jovens no mundo. Isso se deve a uma taxa de 51,7 homicídios para cada 100 mil jovens. Taxa essa que entre 1994 e 2004 cresceu a um ritmo maior que o número de assassinatos entre a população total(13).

Outra informação a esse respeito revela o caráter histórico da perversidade: em cada grupo de dez jovens de 15 a 18 anos assassinados no Brasil, sete são negros(14). Paralelo a isso, constata-se que mais de uma em cada cinco pessoas da população jovem não estuda nem trabalha. A situação é urgente, chegou no limite.

“A violência não tem só idade. Tem cor, raça, território. As vítimas são os negros, os pobres, os moradores de favelas”, afirma a psicóloga Cenise Monte Vicente(15). Portanto, importa que a mudança aconteça de baixo para cima (até porque se não for assim não será uma mudança) na medida em que as próprias vítimas vão tomando consciência de que seus dramas não acontecem isolados. Pelo contrário, se articulam numa estrutura mais ampla, que assegura a continuidade de sua aflição como condição para manter os privilégios de uns poucos.

Contrariando as expectativas dos mais pessimistas, as vítimas, na proporção em que compreendem o problema que os afetam pela raiz, têm condições de combatê-lo em suas causas e não em suas conseqüências somente. De vítimas, podem se reconhecer como sujeitos, agentes de transformação, assumindo uma postura ativa e encontrando no caminho companheiros/as que farão de suas causas também as deles/as. Trata-se, a partir daí, de uma atuação mais profunda e a educação, dependendo da intencionalidade firmada e da capacidade inclusiva das metodologias, pode assumir um papel fundamental nesse processo.

Deste modo, importa reafirmar a necessidade de uma compreensão crítica e democrática da educação e desmitificar a pretensa neutralidade do processo educativo. Já dizia o professor Paulo Freire que “é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político”. É neste sentido que uma das questões fundamentais no processo educativo seja a clareza em torno de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, fazemos a educação(16).

Além disso, é preciso ter em conta que “Estando num lado da rua, ninguém estará em seguida no outro, a não ser atravessando a rua. Se estou no lado de cá, não posso chegar ao lado de lá, partindo de lá, mas de cá. Assim também ocorre com a compreensão menos rigorosa, menos exata da realidade. Temos de respeitar os níveis de compreensão que os educandos -não importa quem sejam – estão tendo de sua própria realidade. Impor a eles a nossa compreensão em nome de sua libertação é aceitar soluções autoritárias como caminhos de liberdade”(17).

Tendo clareza da intencionalidade do processo educativo e das formas democráticas de construí-lo é que, diante do preocupante quadro de violência no qual está mergulhada a sociedade, importa que se chame a atenção para a franca necessidade de uma educação para a paz, como um de vários elementos que podem compor possibilidades de transformação.

A educação para a paz não implica em (con)formar pessoas no sentido de aceitarem caladas as injustiças por que passam e vêem seus semelhantes passando. A paz não tem origem no conformismo ou no silêncio. O conformismo e o silêncio no máximo podem permitir a manutenção das condições de injustiça sem incomodar os que dela tiram proveito. A educação que domestica os sujeitos só interessa aos que não querem abrir mão de seus privilégios.

A paz, na verdade, é conseqüência da justiça e educação para a paz é, portanto, a educação para a luta por justiça. Ao oprimido, não interessa uma conciliação com o opressor. Ao contrário, ao oprimido importa a liberdade que liberta inclusive o opressor. A educação, nesse contexto, pode ser uma alavanca de paz, justiça e liberdade, contribuindo para a formação de mulheres e homens novos e de uma sociedade justa, logo livre do mal da violência.

“Em primeiro lugar, porém, é preciso que a educação dê carne e espírito ao modelo de ser humano virtuoso que, então, instaurará uma sociedade justa e bela. Nada poderá ser feito antes que uma geração inteira de gente boa e justa assuma a tarefa de criar a sociedade ideal. Enquanto esta geração não surge, algumas obras assistenciais e humanitárias são realizadas, com as quais se pode inclusive ajudar o projeto maior”(18) desde que estejam, de fato, orientadas pelo Projeto Maior que vislumbra “Outro Mundo Possível”.

Notas:

(1) Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u494509
.shtml
(2) Fonte: http://www.webciencia.com/13_fome.htm
(3) Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/clipping/um-mundo
-de-favelas.php
(4) Ver SANTOS, Milton. “Por Uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência universal”. Rio de Janeiro: Record, 2007
(5) Fonte: http://dgraca.wordpress.com/2008/03/24/mortos-em-guerras
-ao-longo-do-tempo/
(6) Conferir http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/02/412180.shtml (publicado na Revista “Caros Amigos” por Mylton Severiano na coluna “Enfermaria”).
(7) “O termo BULLYING compreende todas as formas de atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder” Fonte: http://www.bullying.com.br/BConceituacao21.htm
(8) Fonte: http://aprendiz.uol.com.br/content/thopefrudo.mmp
(9) Oligopólio (do grego oligos, poucos + polens, vender). Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Oligop%C3%B3lio
(10) Jornal Brasil de Fato. Ano 7 – nº 323. 7 a 13 de maio de 2009.
(11) Fonte: http://www.adital.com.br/Site/noticia.asp?lang=PT&cod=
36640
(12) Fonte: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20090413124640276
(13) Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/internacional/2006/11/16/ult27u58933.
jhtm
(14) Fonte: http://aprendiz.uol.com.br/content/thopefrudo.mmp
(15) Idem.
(16) Ver FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Assoc.: Cortez, 1989.
(17) Idem.
(18) Ibidem.