É bom estarmos aqui

Pe. Alfredo J. Gonçalves

O bispo Anastácio Sinaíta, no século VII, num sermão sobre o Dia da Transfiguração, retoma com ênfase a expressão de Pedro: “Senhor, é bom estarmos aqui” (Mt 17,4). E continua o prelado: “Sim, Pedro, verdadeiramente é bom estarmos aqui com Jesus e aqui permanecermos pelos séculos. Que pode haver de mais delicioso, de mais profundo, de melhor do que estar com Deus, conformar-se a ele, encontrar-se na luz? De fato, cada um de nós, tendo Deus em si, transfigurado em sua imagem divina, exclame jubiloso: É bom estarmos aqui, onde tudo é luminoso, onde está o gáudio, a felicidade e a alegria. Onde no coração tudo é tranquilo, sereno e suave. Onde se vê a Cristo, Deus. Onde ele junto com o Pai tem sua morada e ao entrar, diz: ‘Hoje chegou a salvação para esta casa’ (Lc 19,9). Onde com Cristo estão os tesouros e se acumulam os bens eternos. Onde as primícias e figuras dos séculos futuros se desenham como em espelho”.

É bom estarmos aqui, onde? No monte Tabor, na montanha. Em termos bíblicos, representa o lugar do encontro com o transcendente. Símbolo da epifania, revelação de Deus. Ponto de ligação entre o divino e o humano. Dizem as Sagradas Escrituras, por exemplo, que a cruz é maldita e maldito quem pende de seu madeiro (Dt 21,23 e Gal 3,13). Era a morte reservada aos piores malfeitores, “suplício próprio dos escravos” (Tácito) ou “o suplício mais cruel e horrível” (Cícero), de acordo com a citação de Enzo Bianchi, no livreto Può la morte tradire la vita? Colocada no alto do Gólgota, entre o céu e a terra, a cruz não pertence nem a esta nem àquele. De ambos está banida e exilada. “Esta morte é o castigo extremo infringido a quem foi julgado inimigo da comunidade dos crentes e da autoridade religiosa legítima, como também nocivo à pólis da autoridade política”, conclui o autor. Mas o perdão de Cristo sobre ela a transfigura e a torna bendita, sinal do maior gesto de amor que a humanidade já conheceu. Gesto de Deus que se faz homem para que o homem se divinize. Um instrumento de tortura e de morte que, pela total entrega do Salvador, se converte no símbolo por excelência de compaixão e misericórdia.

É bom estarmos aqui, com quem? Precedendo a esse momento crucial da mais ignóbil execução, Jesus antecipa para Pedro, Tiago e João a glória de seu rosto resplandecente, reflexo vivo da face do Pai. Seus amigos mais íntimos são convidados a fortalecer-se para o deserto que terão de atravessar. São banhados pela luz mais intensa, pois em seguida deverão enfrentar a mais absoluta escuridão. Do ponto de vista bíblico-teológico, a transfiguração antecipa e prenuncia a ressurreição e a vitória do amor sobre a morte. Como ainda Enzo Bianchi, “A Bíblia ilustra que amor e morte são os dois inimigos por excelência” E insiste: “não a vida e a morte, mas o amor e a morte! E a morte, que tudo devora e vence inclusive a vida, encontra no amor um inimigo capaz de resistir-lhe, até destruí-la”. Só o amor é capaz de superar a morte. Esta não tem poder sobre que ama. Os ventos e intempéries são incapazes de apagar as pegadas que o amor deixa no solo da história. A morte não tem poder sobre quem vive na entrega e doação. Ela só carrega os que já morreram para a solidariedade, a justiça e a paz. Poder-se-ia afirmar que a transfiguração é uma prova de que a ressurreição, de certa forma, ocorre antes da morte. Pois a morte não mata quem ama.

É bom estamos aqui, fazendo o quê? Jesus está em oração e procura mostrar aos discípulos o encantamento do encontro com Deus. Seu rosto se enche da luz que provém do Pai, se torna ele próprio uma luz. Transfigura-se, antepondo o Ressuscitado ao Crucificado, para que a cruz seja iluminada previamente pela vitória final. Numerosas vezes, Jesus se retira para “um lugar à parte”, para “o deserto” ou para “a montanha”. Desenvolve uma intimidade com o Abba=Pai, procurando estendê-la ao grupo que o acompanha. Três episódios ilustram de forma inquestionável esse processo de sintonia com o projeto de Deus. O primeiro refere-se à oração do Pai-nosso (Lc 11,1-4). O êxtase do Mestre em atitude de oração contamina os discípulos, que solicitam que os ensine a rezar. Depois, celebrada a última ceia, o Quarto Evangelho, no capítulo 17, apresenta-nos a oração sacerdotal de Jesus, em que prevalece a insistência de que os discípulos “sejam um, como eu e o Pai somos um”. Por fim, no Monte das Oliveiras, Jesus reza: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice; contudo, não se faça a minha, mas a tua vontade”. “Cheio de angústia, orava com mais insistência, e o suor se lhe tornou semelhante a espessas gotas de sangue que caiam por terra” (Lc 22,39-45).

Na prática de Jesus, a intimidade com o Pai cresce em igual proporção ao compromisso com os fracos e indefesos, doentes e marginalizados, perdidos e pecadores. Longe de se excluírem, oração e ação se complementam. Montanha e rua interagem: se questionam e se interpelam continuamente. Quanto mais Jesus se extasia diante da luz da Casa de Deus, mais é projetado ao encontro dos rostos desfigurados, solitários e abandonados pelos caminhos. A contemplação exige o compromisso com os pobres, o qual, por seu turno, leva a um novo estágio de contemplação. Instala-se assim um círculo virtuoso. Nessa dinâmica dialética, montanha e rua constituem duas dimensões de uma mesma prática. Respirando o oxigênio da Casa de Deus, embriagando-se de sua água viva, deixando-se iluminar por seu brilho – as atividades do dia-a-dia tornam-se bem mais leves. O tempo reservado para a oração não subtrai forças ao compromisso, ao contrário, qualifica cada ação com novo tempero. Não que a oração modifique os problemas do cotidiano, mas modifica nossa maneira de encará-los. Traz serenidade e paz, apesar das tempestades, turbulências e tribulações.

A esta altura, valeria a pena estabelecer uma relação entre a frase de Pedro – “É bom estarmos aqui” – e a imagem do jardineiro que Santa Tereza D’Ávila desenvolve a partir do capítulo onze do clássico Livro da Vida. Ela discorre sobre os quatro estágios da oração mental e, correspondentemente, sobre as quatro formas de encontrar água para manter o jardim irrigado. Enquanto no início do processo místico o jardineiro necessita de um grande esforço para providenciar a água, à medida que se aprofunda a oração, Sua Majestade a oferece gratuitamente como dádiva, sem qualquer tipo de esforço por parte da alma. Esta permanece num estado crescente e quase inconsciente de quietude: em lugar de o jardineiro preparar o terreno para a visita do Senhor, este é que trabalha e lhe cumula de bens inefáveis. O êxtase adquire tal intensidade que a inteligência, memória e a imaginação são deixadas de lado. Tereza chega a dizer que a memória “não parece ser outra coisa senão uma dessas mariposas da noite, importunas e desassossegadas” (Cap. 17, nº 6).

Mas convém deter-se um pouco em algumas expressões utilizadas pela santa para relatar essa “elevação do espírito ou junção com o amor celestial” (Cap. 18, nº 7). Suas próprias palavras, extraídas do capítulo 16, dizem mais que qualquer comentário: “é um glorioso desatino, uma celestial loucura onde se aprende a verdadeira sabedoria e é uma deleitosíssima maneira de a alma se regozijar”. Ou também: “muitas vezes ficava assim como desatinada e embriagada neste amor e jamais tinha conseguido entender como era”. E ainda: “a alma quereria soltar a voz em louvores e fica que não cabe em si: um desassossego gostoso” (…) “Diz mil desatinos santos, atinando sempre a contentar quem a mantém assim”. Concluindo que se trata de uma “santa loucura celestial”.

Mais adiante, no capítulo 18, voltam expressões como “voo do espírito”, “quem tiver chegado ao arrebatamento entenderá bem”, “começando aquelas duas potências a se embriagar e a saborear aquele vinho divino, voltam com facilidade a se perder para ganhar muito mais”. O termo desatino é significativo de um estado onde os pés se afastam da terra e a vontade busca as coisas do alto. “Como não pode compreender o que entende”, diz Tereza, “é não entender entendendo” (nº 14). E termina com uma afirmação no mínimo instigante para quem se aventura nesse processo de oração mental: “a vontade tem que estar bem ocupada em amar, mas não entende como ama. O entendimento, se entende, não entende como entende. Ao menos não consegue compreender nada do que percebe” (nº 14).

A exemplo do apóstolo Paulo, Tereza reconhece que carrega um “tesouro em vasos de barro” (2Cor 4,1-6), que tem de suportar o aguilhão do “espinho na carne” (2Cor 12,7-10) e que “tudo é lixo para quem encontra Jesus Cristo” (Fil 3,7-14). Arrebatada pela experiência da oração mental, suplica: “Não ponhais, Criador meu, tão precioso licor em copo tão quebrado, pois já vistes de outras vezes que eu volto a derramá-lo” (Cap. 18, nº 4). E no mesmo capítulo, insiste: “Isso que digo é a inteira verdade e, assim, o que for bom é sua doutrina. O mau, está claro, é do oceano de males que eu sou” (nº 8). Palavras que nos fazem remontar aos primeiros capítulos do livro, quando a santa sublinha vezes sem conta a sua “ruindade” comparada às dádivas de Deus.

Da mesma forma que em Pedro, no episódio da transfiguração, o êxtase produziu palavras de contentamento, Tereza D’Ávila inicia o capítulo 19 dizendo que “fica a alma por essa oração e união com enorme ternura, de modo que quereria se desfazer, não de tristeza, mas sim de lágrimas de regozijo” (nº 01) “Começa a dar sinais de alma que guarda tesouros do céu e a ter desejo de reparti-los com outros, e suplicar a Deus que não seja só ela a rica”. Neste ponto, o jardineiro, sinônimo de místico que prepara o terreno para a vida do Senhor, já não precisa esforçar-se. Sua Majestade se encarrega de irrigar o solo: “a água a embebe tanto que quase nunca seca” (nº 03).