Mitos e fatos da migração
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O primeiro mito é aquele que vincula de forma erroneamente estreita migração e criminalidade. Um olhar sobre os Meios de Comunicação Social e a mídia em geral, ainda que a voo de pássaro, tropeçará a todo momento com expressões que procuram definir os migrantes como clandestinos, irregulares, ilegítimos, extra-comunitários, negros, estranhos, entre outras. Tais termos, atribuídos com frequência e ligeireza a quem migra, carregam, por si só, fortemente as tintas da criminalização. É como se indicassem alguém que se encontra fora da normalidade; pior ainda, que deve acomodar-se ou ser banido do meio social. Acontecimentos como os atentados de 11 de setembro de 2001 só fazem reforçar essa tonalidade discriminatória.
Nesta perspectiva, muitas vezes as notícias ligadas ao narcotráfico ou ao tráfico de pessoas encontram-se mescladas e confundidas com aquelas que se referem às pessoas que simplesmente buscam trabalho e futuro em outra região ou país. Nem precisaria lembrar que, em qualquer noticiário – televisão, jornal ou rádio – o agrupamento por blocos ou temas nunca é neutro. Um exemplo típico é o da violência explícita: ou seja, quando um crime é praticado por um migrante, esta circunstância é colocada em relevo, sublinhando-se em geral sua origem, coisa que não ocorre nos demais casos.
Longe de ser um criminoso, o migrante deixa sua terra ou pátria para escapar a algum tipo de violência: econômica, social, política, cultural, religiosa… Por isso, é antes um peregrino da paz que, rompendo fronteiras, se converte em protagonista de novos laços. Proporciona o encontro e intercâmbio de expressões e valores interculturais. Amplia o conceito de pátria, aumenta as oportunidades que a vida oferece, potencia novas formas de desenvolvimento. De fato, encontro de pessoas, povos e nações não apenas soma, mas multiplica as energias em jogo.
Um segundo mito mostra o fenômeno migratório sobre o pano ideológico da segurança nacional. Este modo de ver remonta aos tempos da guerra fria e do uso desta tanto para o controle das fronteiras quanto para a repressão interna. Apesar da guerra fria já fazer parte do passado, tratar os migrantes nessa ótica conduz facilmente a confrontos bem quentes com as autoridades policiais, onde as lágrimas e o sangue derramados não são nada frios. Em outros termos, migração deixa de ser um fenômeno socioeconômico e político-social, para converter-se em caso de polícia.
Sob semelhante visão o migrante, pelo fato mesmo de sê-lo, é visto como delinquente. Ambos os mitos se entrelaçam: quem ousa migrar perturba a paz, provoca distúrbios e requer a presença da polícia. Torna-se indesejado: simultaneamente dispensável e indispensável. Indispensável para os trabalhos mais sujos, pesados e mal remunerados; dispensável, como trabalhador com todos os seus direitos. Ao mesmo tempo que se lhe abre a porta dos fundos, fecha-se a porta da frente. Vira um cidadão de segunda classe, aceito e rechaçado. Discriminação, preconceito e racismo fazem parte deste panorama negativo.
Em lugar da ideologia da segurança nacional como pretexto para frear o vaivém dos migrantes, convém reconhecer que o direito de ir e vir cria pontes, estabelece relações, elimina distâncias. Isso não significa esconder as tensões sob um falso verniz, mas buscar superá-las através da escuta, do diálogo e da mútua compreensão. As diferenças, quando colocadas frente a frente, enriquecem. O desafio está no salto qualitativo do multiculturalismo ao interculturalismo. Enquanto no primeiro caso basta a tolerância e a boa vizihança, no segundo dá-se um passo além, exigindo o confronto e a purificação recíproca e crescente das diversas culturas.
Em terceiro lugar, um novo mito, que decorre do anterior, se dá quando o migrante (outro/diferente) se torna bode expiatório dos problemas sociais. Infelizmente, a história tem sido pródiga em apontar tais bodes expiatórios, em vista de cada época ou localidade. Alguns são bem conhecidos: hereges, feiticeiras, loucos, trabalhadores-vagabundos, judeus, extra-comunitários, comunistas ou anticomunistas, negros, indígenas, mendigos… Seria o caso de colocar aspas em cada um desses grupos? Talvez o próprio fato de utilizar o recurso das aspas seja uma forma de reforçar o preconceito. Atrás das aspas pode ocultar-se uma maneira de construir e definir a identidade do outro não por aquilo que ele é, e sim por aquilo que não é, ou que nós gostaríamos que fosse. Há muito encontra-se morto e sepultado o mito da neutralidade lingusística, da escolha das palavras e dos acontecimentos a serem narrados.
Todo bode expiatório é de antemão culpado. A culpa precede qualquer possibilidade de julgamento. Entrelaçam-se, mais uma vez, todos os mitos. Encontrado o culpado, vem a setença e o expurgo, o linchamento público e até a própria morte. Quando o dedo em riste, as acusações e as pedras recaem sobre alguém que veio de fora, poupa-se um dos nossos. Mais ainda, reforça-se a coesão interna. Voltando às lições da história, a guerra contra um inimigo exterior (não importa se verdadeiro ou fabricado), costuma ser uma arma para manter o poder dos tiranos sobre seus súditos.
Ao invés de bode expiatório, ou seja de um problema, a presença do migrante pode ser uma interpelação que alarga o horizonte de toda a humanidade. Esta se torna mais rica, plural, aberta e multiétnica. Para as autoridades, o migrante é não raro um caso de polícia, que pertuba a ordem estabelecida; para a opinião pública e a mídia, pode ser um intruso que vem roubar o trabalho e o pão; porém, do ponto de vista evangélico ou dos direitos humanos, torna-se um potencial de enriquecimento recíproco.
Por fim, o mito do nacionalismo que vê um migrante como cidadão exclusivo e excludente de determinado país, ou então como um crente fanatizado de um determinado credo religioso. Visão redutiva e xenofóbica, provinciana e chauvinista. Talvez muito frequente nas migrações de séculos passados, onde religião e nacionalidade costumavam nutrir-se uma à outra. Não poucas nações, historicamente falando, assumiram o papel de portadoras da salvação, da democracia, ou do comunismo internacional, como se tivessem de cumprir uma missão especial frente ao mundo caótico e selvagem. Tempo da união promíscua entre trono e altar, espada e cruz, rei e sacerdote, emplo e palácio.
Em tais circunstâncias, a migração costumava cristalizar um determinado estágio das expressões culturais e religiosas. A raiz arrancada do solo deixa de evoluir organicamente, restringido-se a reproduzir indefiidamente o que acumulou. Em termos concretos, muitas comunidades migrantes continuam repetindo ritos, devoções e canções que, no país de origem, seus conterrâneos já ultrapassaram, superando-os e substituindo-os por outros. Fundamentalismo religioso e totalitarismo político costumam ser os frutos nocivos de tais visões estreitas e ideológicas, com um rasto trágico e macabro de fogueiras, ruínas e cadáveres. Nestes casos, os deuses ou anjos podem converter-se em demônios.
O ato de migrar, e de fazê-lo várias vezes e em diversas direções, rompe todo tipo de barreiras, abrindo espaço para outras histórias e destinos, outras pessoas e grupos, outras línguas e nações e outros modos de viver e de pensar. Movimentos migratórios, estudo de idiomas diferentes e intercâmbio cultural ajudam a expandir o leque da compreensão humana, sinalizando o horizonte da aldeia global ou da cidadania universal, de resto, num contexto de economia globalizada.