O segredo do poder do capitalismo (III) e a “sobrevivência” da Teologia da Libertação

Jung Mo Sung

Recentemente (08/08/14), a Adital publicou uma entrevista com Clodovis Boff que gerou várias reações, escritas ou não. Perguntado se a Teologia da Libertação ainda vive e se ainda faz sentido nos dias de hoje, C. Boff respondeu, com certa razão, que “Sim, existem teólogos da libertação que se reúnem e escrevem. Mas seu declínio como tendência à parte é inegável. A meu ver, a Teologia da Libertação “prescreveu” historicamente. Deu o que tinha que dar: conscientizar a Igreja sobre a opção preferencial pelos pobres.”

Muitos reagiram e reagem dizendo que a TL não morreu e é ainda importante porque ainda existem pobres, há lutas pela “libertação” e porque a fé cristã tem que dizer algo sobre isso. Na verdade, essas realidades existiam antes da TL e vão continuar existindo por muito tempo, independentemente da existência ou não, vitalidade ou não da TL. Além disso, existem outras teologias críticas, que não se identificam com a TL, que se propõe essa mesma tarefa. Por isso, assumindo-me com um teólogo da libertação que ainda insiste em escrever reflexões na linha da TL, penso que precisamos reconhecer que C. Boff tem, pelo menos, uma parte da razão. De fato, a produção da TL diminuiu tanto em quantidade, quanto também em termos de qualidade de inovação, criticidade e consistência teórica. Eu tenho dúvida quanto ao otimismo de C. Boff ao dizer que a Igreja já está conscientizado da “opção preferencial pelos pobres” (sem entrar em discussão aqui sobre o “preferencial”). As práticas de muitas comunidades, paróquias, dioceses e movimentos leigos não parecem refletir isso. Isto é, a TL não deu “o que tinha que dar”, no sentido de que se essa é ou era a sua única contribuição fundamental, ainda não a cumpriu.

É verdade que muitos na Igreja, mesmo não assumindo na prática, são “obrigados” (para parecerem “evangelicamente” corretos) a admitirem que a Igreja precisa também se preocupar com as questões sociais, como a pobreza. E isso é também uma contribuição da TL. E se a contribuição da TL se resume em falar da opção pelos pobres, de fato, como diz C. Boff, ela já “prescreveu historicamente”. Já se falou muito sobre isso. E muitos dos escritos das novas gerações que se identificam com a TL são mais exegese e sistematização de conceitos e tratados teológicos – no sentido clássico do termo – dos principais nomes da TL; e bem menos reflexões teológicas críticas sobre e a partir das lutas por uma sociedade mais justa, humana e sustentável, que é uma característica que pretendia diferenciar a TL de outras teologias políticas ou sociais na época do seu surgimento.

Apesar de reconhecer que C. Boff tem em parte tem razão no seu diagnóstico sobre a situação da TL, penso que ele se equivoca ao reduzir a TL ao grupo ligado à Igreja Católica que se focou demasiadamente (a meu ver) nas questões intra-eclesiais. É verdade que esse grupo é o mais conhecido, mas é preciso reconhecer que a TL é mais ampla.

Eu fiz esse pequeno “desvio” na minha reflexão sobre o “segredo do poder do capitalismo” por causa de uma afirmação que fiz no artigo anterior: “Para desmascarar o caráter perverso e desumano dessa dimensão teológico-mística das mercadorias e dos “grifes”, é preciso fazer o uso da teologia e das ciências da religião. Nesse ponto, a teologia da libertação pode e deve fazer uma contribuição ao debate social crítico.”

Teologia cristã não é uma “ciência sobre Deus e realidades divinas” – pois não se pode fazer ciência sobre Deus –, mas sim um discernimento das imagens de Deus presentes no nosso mundo a partir da imagem de Deus nos revelado na pessoa de Jesus Cristo. Nessa tarefa, a crítica da idolatria que move a sociedade é o passo primeiro para podermos conhecer o Deus, que “ninguém jamais viu” mas que se faz presente quando nós vivemos o amor solidário (ágape) uns com outros (cf 1 Jo 4,12), especialmente com os mais pobres e marginalizados. Santo Tomás de Aquino já nos ensinava que de Deus nós sabemos mais o que não é, do que o que(quem) é.

Ao descobrirmos que, no capitalismo, a mercadoria, com seu caráter metafísico-teológico, se tornou o caminho da humanização, podemos então melhor compreender a razão da obsessão pelo consumo do nosso tempo: as pessoas querem consumir cada vez mais porque querem se tornar mais humanos. Nessa cosmovisão e antropologia, o pobre não é um ser humano, pois não consome. Por isso, os seus problemas não são problemas importantes; e os seus reclamos de direito a uma vida digna soam como empecilho a ser combatido na luta intensa por acumulação infinita que permitiria o consumo infinito e assim satisfazer a sede do infinito que ser humano carrega em si.

Isso é o que a Bíblia chama de idolatria e que Jesus explicitou no seu dito: “não se pode servir a Deus e ao Mamón” (dinheiro elevado a categoria do divino). Sem o desmascaramento da idolatria do dinheiro que move o capitalismo atual, as lutas pela justiça social e o cuidado do meio ambiente não serão realmente prioridade do mundo e nem compreendido por muitos. A sustentabilidade ambiental faz parte do discurso do sistema porque se o meio ambiente entrar em colapso, também os ricos sofrerão. Mas só na medida disso. Na idolatria, as pessoas têm olhos, mas não veem.

E esse desmascaramento no âmbito teórico e existencial só é possível com uma perspectiva teológica e espiritual. Por isso, ou a TL, juntamente com outras teologias, se ocupa dessa tarefa, ou ela e outras teologias cristãs serão irrelevantes para o nosso tempo. (a continuar)