Família, essa frágil embarcação!

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

A famíla é hoje uma das instituições mais batidas pelos ventos da chamada pós modernidade. Ventos furiosos, cínicos ou indiferentes. Além de trazerem em suas asas o “canto enganoso da sereia”, costumam abalar de forma irremediável os alicerces a “casa construída sobre a areia”.

  1. Até que a morte vos separe?…

Tudo começa com o próprio matrimônio. A vida de um casal, mais do que nunca, se mantém por um fio à beira de um abismo sempre pronto a engolir as boas intenções, proclamadas no altar ou no cartório. Em tempos idos, e não tão longínquos, a expressão separação/divórcio era a última carta do jogo a ser utilizada por um ou outro dos cônjugues. Uma espécie de trunfo que somente era colocada sobre a mesa após esgotadas todas as tentativas e possibilidades de reconciliação, ou retomada do relacionamento. Hoje essa carta salta fora do baralho à primeira discórdia ou adversidade.

Diante da promesa de fidelidade “na saúde e na doença, na alegria e na tristeza”, a pressa tomou o lugar da paciência. Uma ansiedade mórbida e febril atropela a reflexão e o diálogo. Com frequência inusitada, a via lenta, longa e laboriosa da reconstrução é substituída pelo atalho mais curto, imediato, do “cada um por si”. Improvisamente, com uma rapidez extraordinária, os caminhos se bifurcam. O importante é desembaraçar-se logo um da outra. Esquecer, deletar e jogar pela janela é fácil, muito mais fácil do que enfrentar a dois, olho no olho, a dura tarefa de recomeçar, ainda que seja a partir das ruínas de uma união desfeita ou mal feita. Junto com o casamento, atira-se pela janela a máxima de que é possível reerguer uma fortaleza sobre uma simples gota de amor e afeto. Também nas relações amorosas, impõe com toda força e cultura do “líquido e descartável”.

  1. Lares ou pensões?

Depois, crescem progressivamente as dificuldades da vida em família. É bem verdade que os “tempos modernos” contribuiram, e não pouco, para o processo de erradicação dos os vírus medievais do patriarcalismo, do autoritarismo e submissão da mulher e filhos, da desigualdade de gênero, do machismo e outros “ismos” de igual teor. Em boa parte dos casos, porém, o pêndulo oscila para o extremo oposto. Confunde-se liberdade com o ato de “fazer o que se quer” e não de “fazer o que constrói o bem comum” ou “o que procura fazer a felicidade de todos”. Com esse falso conceito de liberdade, não raro tropeçamos nos becos sem saída da prostituição precoce ou como vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, bem como nos riscos do roubo e da droga, da violência sob as mais diversas modalidades…

Mesmo sem apelar para os casos extremos, quantos “lares” se convertem em uma espécie de “pensão” a baixo preço. Cada membro da família usa a própria casa para comer ou dormir, pouco mais que isso. Entra e sai sem qualquer outro tipo de compromisso com os demais moradores. A sala de televisão toma o lugar da mesa como lugar de encontro. Ou de desencontro, uma vez que a TV converteu-se em nova “rainha do lar”, atraíndo todas as atenções. Ai de quem incomodar os que querem acompanhar a novela ou o telejornal para tratar “assuntos familiares”! Do ponto de vista do casal, de sua relação afetivo-sexual, para um dos dois o sofá acaba por vezes substituindo a cama. Na rotina do cotidiano, desgasta-se e deteriora-se as os laços elementares entre os esposos, entre pais e filhos e entre irmãos, para sequer tomar em consideração os contatos mais amplos de parentesco.

  1. Riscos que interpelam!…

Três perigos rondam a frágil embarcação que é a família, fazendo-se cada vez mais notórios. De um lado, as tensões e conflitos que jogam, uns contra os outros, aqueles que se abrigam debaixo do mesmo teto. A tal ponto que, com uma frequência crescente, busca-se fora de casa o refúgio, o consolo ou o carinho que é impossível encontrar no interior da família. Semelhante fuga vale tanto para marido e mulher quanto para os filhos. O segundo perigo consiste na indiferença. Costuma ser pior que o próprio conflito, pois significa que o interesse pela saúde do grupo familiar morreu de forma definitiva. Quando há tensão e discórdia, pelo menos permanece viva a preocupação de reconstruir as coisas. No indiferentismo, contudo, simplesmente volta-se as costas àqueles que, até agora, nos haviam sido tão caros e íntimos. Aqui os caminhos se bifurcam ou trifurcam antes mesmo da separação ou divórcio. Por fim, o perigo relacionado às crianças envolvidas no tortuoso e conturbado processo de separação. Neste caso sobram perguntas e faltam respostas. Como se desenvolverão nelas a imunidade física,  a estabilidade emocional e a estrutura psíquica – elementos indispensáveis à saúde integral da pessoa humana?

Além dos três perigos apontados, um tabú esconde sob um véu de cumplicidade muitas cenas de abuso intra-familiares. “Em briga de marido e mulher, melhor não meter a colher”, diz o provérbio. É um dos casos em que a realidade desmente a dita sabedoria probervial. As páginas policiais dos noticiários jornalísticos e as estatísticas da sociologia não se cansam de mostrar quão vulneráveis se tornam as mulheres e crianças sob essa falsa proteção da família. Multiplica-se a violência física e moral, as tragédias emergem da noite para o dia, precisamente onde menos se esperava. Onde “tudo parecia andar às mil maravilhas”!

  1. Desafios e potencialidades!..

Uma vez mais, convém retornar ao conceito de liberdade. A liberdade é não apenas um dom de Deus e uma conquista da humanidade, mas também um potencial de energias inesgotáveis. Em nenhuma hipótese, todavia, pode ser desconectada de normas, leis, limites, renúncias e escolhas acertadas. Faz um par indissociável com a responsabilidade. Um exemplo simples e banal: não é difícil imaginar o terraço, aberto e livre, do último andar de um alto edifício. A área, porém, não possui muros de qualquer espécie. Tomemos uma criança de dois anos e a coloquemos sobre esse espaço. “Você é livre, divirta-se”! Qual o resultado? Liberdade sem muros é abismo, sinônimo de inevitável tragédia. A imagem é extrema, caricatural, justamente para alertar sobre os riscos de uma liberdade sem freios. E no entanto, não é exatamente essa a concepção de liberdade que muitas vezes se vê veiculada pelo marketing, a publicidade e a propaganda mais apelativa e desenfreada!

Em tempos não tão distantes, era comum afirmar que a família constitui um jardim. Quando o terreno é sólido e sadio, fértil e bem irrigado, no jardim nascem, crescem e desenvolvem-se plantas viçosas e saudáveis. Folhas, flores e frutos – os mais belos – são a promessa da casa/família. Cheira a romantismo? Sem dúvida, mas sem um mínimo de poesia e imaginação, sem um mínimo de criativdade, sem o mínimo de cuidado  e empenho, o solo se torna vulnerável às pedras, espinhos e ervas daninhas. Os resultados falam por si só: ao lado do matrimônio e da família, deteriora-se igualmente a educação inicial e primordial. Somente o potencial energético da liberdade, regulado pela ética da corresponsabilidade, poderá reverter esses dados.

A família costuma ser o lugar privilegiado não só para os primeiros balbucios, as primeiras palavras e os primeiros passos, mas também para entrar em contato com as primeiras experiências, as primeiras relações interpessoais e os primeiros valores (ou antivalores). Hoje, com o aprofundamento dos estudos de psicologia, sabemos o quanto essas primeiras “aventuras” sejam decisivas para todo o resto da vida, em sentido negativo ou positivo. Daí derivam traumas ou equilíbrio psico-social. Ocorre que uma série de fatores de ordem socioecônomica e político-cultural retirou da família a “tarefa” de educar a criança desde o berço, seja porque os pais não estão preparados para os desafios das novas gerações, seja porque encontram-se em condições difíceis, precárias e inadequadas para semelhante compromisso. Crianças, adolescentes e jovens, mesmo quando inseridas em uma família, nunca se sentiram tão órfãos, sós e perdidos! Igualmente perdidos se sentem os pais diante das turbulências que rondam portas e janelas de casa.

Ao mesmo tempo, porém, a família não foi substituída por nenhuma outra instituição capacitada e idônea para assumir aquela tarefa. Com o passar do tempo, gerou-se uma perigosa lacuna que se torna sempre mais estridente, profunda e flagrante. O “lar infantil”, a creche, a escola e as igrejas (entre outras instituições) tratam de levar a termo essa educação “inicial e primordial”, mas de forma parcial e com “luvas de pelica”, por um duplo motivo. Por um lado, os educandos permanecem mais tempo em casa ou pelas ruas, com demasiado tempo ocioso, do que em tais instituições; por outro, verifica-se não raro uma vigilância excessiva por parte do Estado, o qual, em grau nada desprezível, não somente se revela negligente quanto à responsabilidade de preencher essa lacuna, mas ainda por cima, por vezes vezes impede que outras entidades o tentem. Numa palavra, não faz e não deixa fazer!

  1. O caminho das soluções!…

A referida educação “inicial e primordial” se dificulta ainda mais quando levamos em conta as mudanças rápidas e profundas ocorrem no interior da família moderna ou pósmoderna. A cada ano e a cada década, ela se torna mais diversificada e complexa Mais do que família, no singular, fala-se de famílias, no plural. Atualmente, as ciências sociais colocam em cena variados tipos de núcleos familiares, com necessidades, exigências e desafios especiais e específicos. Além disso, com a crise da economia globalizada, o desemprego crônico e as carências crescentes, as assimetrias sociais e econômicas, junto com as migrações massivas, pulverizam não poucos núcleos familiares. Resulta que, temporária ou definitivamente, rompem-se inclusive as ligações de parentesco que ajdam a manter de pé as famílias mais debilitadas.

Qual a solução ou soluções? Em prmeiro lugar, é preciso tomar conhecimento das transformações em curso na sociedae contemporânea. A elas, corresponde um novo leque no quadro das famílias, como também no contexto do pluralismo cultural em que vivemos. Pluralismo que, dia-a-dia, vai abrindo horizontes desconhecidos, descortinando novas formas de convivência familiar e de patentesco. A cada dia que passa, a criança encontrar-se-á com amiguinhos e coleguinhas que vivem experiências distintas no interior de suas casas. Por mais esforços que se façam para esconder isso dos “meninos e meninas”, esse dado hoje enconra-se escancarado aos olhos de todos e todas.

Depois, faz-ze urgente criar e/ou fortalecer instrumentos e mecanismos necessários para devolver à célula familiar meios, apoio e condições necessárias para manter o jardim preparado para as plantas que virão. Sem tal preparação do terreno, as ervas daninhas tomam conta de todo campo. Enfim, ao lado do grupo familiar, as instituições governamentais ou privados podem estimular e desenvolver outras redes de sustentabilidade desse grupo nuclear, o qual, bem ou mal, queiramos ou não, segue sendo a base de um organismo social sem enfermidades crônicas.

Tanto o organismo de uma pessoa adulta, forte e saudável, quanto o organismo de uma sociedade sadia, igualitária e equilibrada mergulham suas raízes mas profundas na infância. E especialmente na infância remota: os especialistas alertam para o fato de que os primeiros anos de vida, desde a concepção, serão decisivos para o desenvolvimento integral e íntegro do ser humano. Esse broto, ao mesmo tempo frágil e forte, necessita dessas raízes firmes na terra. Necessita igualmente de um contexto sociohistórico justo, fraterno e solidário, seja do ponto de vista socioeconômico, seja do ponto de vista político e cultural. Somente desse modo, sem medos nem traumas que o paralizem, será capaz de erguer-se do chão para buscar a luz do sol e o azul infinito do céu, como flor colorida e bela, aberta e livre. Ou como criança alegre e saudável, que brinca, pula, sorri e respira a brisa suave que refresca a face da terra.

Roma, 28 de maio de 2015