Meu amigo decidiu ficar cego

Fernando Altemeyer Jr.

Um belo dia, eu descubro que um amigo de infância, muito querido e inteligente, decidiu ficar cego. Fiquei pasmo e atordoado. A vida inteira soube que cegos querem ver e que gente inteligente quer o mais e o melhor, mas ao encontrar e ouvir este amigo percebo que, de fato, decidiu cegar-se e que o processo patológico da perda da visão já havia avançado muito. Ele quase não vê mais ninguém. Percebi que está sofrendo e traz marcas na alma. Suas palavras são cada vez mais insensatas e amargas. Ele está se isolando no círculo vicioso que o sufoca e anestesia, sem perceber que piora a cada dia. Tornou-se uma pessoa obcecada e arrogante. Como lembrou o padre de Henri de Lubac (1896-1991): “Quanto mais espessa é a ignorância mais se crê possuidora da verdade (Paradojas seguido de nuevas paradojas, Madrid: PPC, 1989, p. 73)”.

Porque tomou esta decisão inumana e retrógrada? Como alguém tão brilhante e promissor começa a agir, pensar e viver de modo tão fundamentalista? Fui ler dois pensadores contemporâneos essenciais: Zigmunt Bauman e Leônidas Donskis. Ambos mostram que a doença oftalmológica de meu amigo atinge dezenas de pessoas no Ocidente em todas as classes sociais. Tornou-se nova epidemia: uma cegueira moral assumida e desejada. Eis o que eles dizem: “Essa é a cegueira moral – voluntariamente escolhida e imposta ou aceita com resignação – de uma época que, mais que qualquer outra coisa, necessita de rapidez e acuidade na compreensão e no sentimento. Para que possamos recuperar nossa sagacidade em tempos sombrios, é preciso devolver a dignidade à multidão de extras, ao individuo estatístico, às unidades estatísticas, à massa, ao eleitorado, ao homem da esquina e ao querido povo – ou seja – todos aqueles conceitos ilusórios construídos por tecnocratas que se apresentam como democratas propagandeando a noção de que sabemos tudo que há para saber sobre as pessoas e suas necessidades, e que todos esses dados são apontados com exatidão e totalmente explicados pelo mercado, pelo Estado, pelas pesquisas sociológicas, pelas avaliações e por qualquer outra coisa que transforma as pessoas em anônimos globais (BAUMAN, Zigmunt; DONSKIS, Leônidas. Cegueira moral, Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 18-19).”

Cheguei ao diagnóstico: o meu querido amigo foi tão manipulado pela mídia, pelo mercado totalitário e por grupos ideológicos que quis ser cego. Vive uma vida robotizada, conduzido por mecanismos invisíveis e se tornou consumidor, submisso às mercadorias ao perder a dignidade de sujeito livre e consciente. Houve um esquecimento deliberado do sofrimento dos outros, a perda de sensibilidade pela hipervalorizarão da razão tecnológica. Deixou de ser cidadão, pois agora professa o credo do deus-lucro. Para ele vale o que for útil para o seu culto individualista. Recusa e não quer saber das dores alheias e isto o tem conduzido à supressão simbólica e afetiva de todos os que o incomodam. É como se a vida se transformasse em um imenso ambiente de Facebook onde se inclui ou se exclui pessoas ao simples toque da tecla do computador. Amizades são feitas ou desfeitas em segundos e ao final não se tem nenhum amigo ou comunhão real. Ao destituir os seres humanos de seus rostos e romper com as individualidades emergiu o medo. Brota uma intolerância compulsória, que faz buscar com sofreguidão o disfarce cínico da insensibilidade moral.

Meu amigo assumiu um comportamento empedernido, desumano e insensível pela firme decisão de viver indiferente. Não quer mais saber das dores dos outros. Não quer ouvir histórias reais de dores e alegrias. Tornou-se um novo Pôncio Pilatos lavando suas mãos. Quer ficar acima do bem e do mal como um ser superior. Acabou marcado por grave normopatia (termo introduzido na psicanálise por Joyce McDougall para designar um tipo de paciente aparentemente bem adaptado e normal, diferentemente do neurótico e psicótico, mas cuja análise chegava a um impasse em razão de sua impossibilidade de mergulhar no mundo interno, exigência básica para o trabalho analítico). Virou um funcionário do sistema e reprodutor dócil e assustadoramente normal. Faz tudo para que nada mude. Quer ser um funcionário padrão que vê e não enxerga. Que olhe, mas não compreenda. Que fale e não explique. Repete como papagaio as frases impostas pela mídia e como na música de Luiz Gonzaga se fez um açum-preto cego que canta bonito dentro de sua gaiola dourada. Perdeu a liberdade para viver a segurança. Sua melodia nunca ultrapassa 140 palavras. Tornou-se um homem-tuitado, como uma nova espécie humana que perde a capacidade de dizer o mundo de forma complexa e conflitiva. A insensibilidade gerou sua cegueira, a cegueira gerou a afasia que produz solidão e um vazio existencial depressivo. Sem voltar a sentir, meu amigo pós-humano foi afundando em seu próprio ego, repleto de coisas, mas sem sentimento e paixão. Está conectado com o planeta via modem e internet, mas tem poucos amigos de carne e osso e uma ínfima reflexão crítica. Decidiu ficar livre da dor, e em troca perdeu muito de sua humanidade.

Este meu amigo para fugir do grande mal que o afligia, pretendeu exorcizar todos os demônios de nosso tempo, rompendo com os vínculos e a comunhão essencial entre os humanos. Só não percebeu que o mal assumiu a máscara da fraqueza. E que a sedução do mal não reside na força, mas na sua frágil invisibilidade. Ao banalizar o mal e impor o bem, ficou doente e insensível. Assim, enquanto a economia vai sempre sofisticando, as pessoas e a ética vão adoecendo e perdendo espaço. As coisas passam a ser desejadas e os seres humanos passam a ser descartados. Os objetos se tornam mais importantes que crianças, índios, negros, mulheres, famílias, comunidades. As pessoas e os amigos se tornam assustadoramente normais, sensatos e robotizados. Somos vistos por milhões e até bilhões de pessoas, mas não nos vemos e nem sabemos quem somos de verdade. É como se a luz que vem de dentro se apagasse e assim nós sofremos ainda mais ao nos afastar de toda a sensibilidade por uma cegueira assumida. Diz o monge beneditino Freeman: “Uma das grandes causas de tristeza e de sofrimento é a nossa incapacidade de nos comunicarmos. Frequentemente, o que tentamos exprimir ou o próprio meio de expressão distorce o que sentimos ou o que queremos dizer. O que de fato nos bloqueia em relação ao nosso verdadeiro eu? Não é resposta fácil, porém é simples. Nada. Não há nada entre nós e nosso verdadeiro eu. Não há nada mesmo, além da falsa ideia de que realmente existe algo. Esta falsa ideia é aquilo que chamamos de ego. E o ego, que é a causa de toda solidão e isolamento, existe apena como ilusão, não é realmente nada. O ego simplesmente distorce a percepção da realidade, é falsa lente que embaça a visão e provoca má interpretação em relação a nós mesmos e os outros por dupla visão. Não há nada entre nosso eu e nós mesmos porque, obviamente, nós somos o verdadeiro eu. A experiência de viver nossa luz interior em unidade com a realidade da Luz Divina chama-se inspiração. Para concretizá-la, temos que aprender a ser nós mesmos, temos que nos libertar da ideia falsa e corrigir a visão embaçada do ego. O ego é um engano (FREEMAN, Laurence. A luz que vem de dentro – o caminho interior da meditação, São Paulo: Paulus, 1989, p. 109-110)”.

Os cegos morais passam a ser devotos do deus-consumo, bonecos mecanizados dos mercados, rejeitando a cidadania inata do ser humano para livrar-se da realidade e viver o mundo ficcional sem freios onde se realizem todos os desejos, como compradores e usuários. Cada loja de um Shopping Center ou aeroporto se transforma neste mundo consumista e hedonista em “farmácia que fornece tranquilizantes e anestésicos, neste caso, remédios que servem para aliviar ou amenizar dores morais, não físicas (Cegueira moral, p. 181)”. Zigmunt Bauman confirma tristemente que: “Como a negligência moral está crescendo em alcance e intensidade, a demanda por analgésicos aumenta cada vez mais, e o consumo de tranquilizantes morais se transforma em vício. Por conseguinte, uma insensibilidade moral induzida e manipulada se torna uma compulsão ou uma segunda natureza: uma condição permanente e quase universal – e as dores morais são despidas de seu papel salutar de prevenir, alertar e mobilizar. Com as dores morais aliviadas antes de se tornarem verdadeiramente perturbadoras e preocupantes, a teia de vínculos humanos tecida com os fios da moral torna-se cada vez mais débil e frágil, vindo a descosturar-se (Cegueira moral, p. 181)”.

Assim o diagnóstico de meu amigo é claro e triste. Ele faz parte da geração que foi adestrada para ser cínica, insensível e pragmática. Grandes temas utópicos foram varridos para a lata do lixo. O que vale é o consumo, a grife das roupas, o mostrar-se exteriormente e, sobretudo a solidão e a depressão precoces. Vive vida precária sob o manto do infinito. Transformaram as coisas em divindades e percebem que isto é vazio e sem sentido. Meu amigo foi cegado antes de decidir cegar-se. Ele não tem a menor ideia do que o futuro lhe reserva ou de onde ele está situado no presente. Perdeu o senso de história e de valores. A vida e os sentimentos parecem fazer parte de um vídeo game. E nele sempre pode aparecer um personagem fantasma a tirar nossa vida. E o ‘game over’ sempre está por um fio. E assim muitos se sentem peças descartáveis de um jogo. E aprendem a jogar por opção ou necessidade. E ao entrar neste mar bravio e feroz, descobrem que o oceano não tem cabelo e não há onde segurar-se. Começa a faltar pé e correntes subterrâneas mexem com nosso pensar e agir.

Transplante de córneas

Se meu amigo perguntasse o que acho de tudo isso e da triste decisão de cegar-se, preciso encontrar palavras de superação. Em primeiro lugar diria que é preciso enfrentar o fatalismo do sistema e deixar o rei nu. Não podemos aceitar as cartas viciadas deste jogo macabro sem quebrar regras tão negativas. Não é fácil curar as cegueiras, e pior ainda, a cegueira moral assumida. Será preciso vontade ética e discernimento. Não será curado de uma vez. Será um longo processo terapêutico que envolverá várias etapas, como aquele processo feito por Jesus junto ao cego de Betsaida (cf. Mc 8,22-26). Esse modo processual de curar muitas cegueiras urbanas me foi ensinado pelo padre Júlio Lancelotti, profeta nas ruas da cidade de São Paulo.

Em segundo lugar, direi ao amigo que é preciso recuperar a dimensão afetiva na profundidade e densidade originais. Deixar o coração falar. Não submeter-se aos caprichos e medos da razão tecnológica. O coração tem razões que a própria razão desconhece, disse Blaise Pascal. Isto significa que podemos reencontrar pela via do sentimento, da compaixão e do coração o caminho da visão e da contemplação. Este foi o caminho de alguns cegos feitos visionários. Pode-se recordar de Tirésias, de Tebas. Ficara cego, pois vira a nudez da deusa Atenas banhando-se e por ela é cegado como punição. Para consolar a mãe, a ninfa Chariclo, a deusa grega purificará os ouvidos de Tirésias de modo que este possa compreender a linguagem dos pássaros, e ainda com um bastão, guiar-se melhor que quando via e ainda receber o dom da profecia. Sua cegueira se metamorfoseia em vidência e clarividência. Vê o que os outros nem imaginam existir. Vê mesmo sem os olhos, pois tem ouvidos apurados, senso de futuro e, um olfato que sabe que há alguém presente mesmo sem ver. Os quatro sentidos (ou portais) são hipertrofiados para compensar o portal perdido. Este modo valente e visionário de curar cegueiras aprendi do deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade, homem construtor da justiça e da memória verdadeira.

Em terceiro lugar, é preciso retomar uma disciplina moral que evite o que é mau e tudo que se pareça com o mal. Assim ensinava o Catecismo dos primeiros cristãos: “Meu filho, não seja mentiroso, porque a mentira leva ao roubo. Não seja ávido de dinheiro, nem cobice a fama, porque os roubos nascem de todas estas coisas. Não se engrandeça a si mesmo, nem se entregue à insolência. Não se junte com os grandes, mas converse com os justos e pobres (Didaqué, São Paulo: Paulinas, 1989, p. 12-13)”. A cegueira moral é consequência de uma grande insensibilidade e orgulho. Ela é fruto da ignorância e negligência pessoais. Será preciso aquecer corações, e aplicar-se ao exercício do amor fraterno (1 Jo 2,11). Este modo de ver as pessoas sem orgulho, aprendi da irmã vicentina Helena Maria Rodrigues, hoje atuando no Instituto de Cegos Padre Chico, no bairro do Ipiranga.

Enfim, para sair deste redemoinho energético que suga esperanças e sonhos, é preciso assumir/reassumir valores existenciais. Para superar a neurose pessoal e política será preciso romper com o ego inflado, com o narcisismo doentio que vive do consumo voraz. É preciso valorizar o simples, o austero como ensina o líder tibetano Dalai Lama: “Siga os três erres: respeito por si mesmo; respeito pelos outros; responsabilidade por todas as suas ações”. Será preciso sair da ilha e lançar-se ao mar, assumindo os riscos da travessia humana, um náufrago pelo outro (FORTE, Bruno. Um pelo outro, São Paulo: Paulinas, 2006). Abrir-se ao braço estendido dos amigos para curtir um afago, sem preço, sem qualquer utilidade que não fosse a da pura gratuidade. É preciso ser criativo, e permitir-se o toque da compaixão. Ninguém pode ser guia de cegos, se permanece cego (Mt 23,24). O suborno cega e tira a nossa perspicácia (Ex 23,8). Restaurar a vista aos cegos está no núcleo da mensagem de Jesus (Lc 4,18 e Lc 7,22). Para voltar a ser um amigo sadio, feliz, prudente e discreto será preciso fazer um “transplante de córneas”! Ver com outros olhos. Conhecer a vida de outra maneira e com outra métrica. Como diziam os padres da igreja: é preciso fazer que o melhor seja a justa medida de nossa decisão moral e vital. E isto só pode ser feito em comunidade de amigos e irmãos. Ela pode ser o lugar básico para fazer surgir um novo olhar que supera a cegueira e a solidão.

Jesus nos dá uma bela lição em sua vida pública quando participa de uma ceia e nela ele faz alguns cegos morais mudarem seu preconceito. Assim consta do delicado relato do Evangelho de Lucas no capítulo 7. Jesus é convidado por um fariseu de nome Simão para cear com ele e seus convidados solenes. De forma imprevista surge na cena uma mulher reconhecida na cidade como pecadora. Ela entra sem convite, e em lugar de comer, fica beijando os pés de Jesus com lágrimas, perfume e amor (MONTES, Fernando. As perguntas de Jesus, São Paulo: Loyola, 2005). O anfitrião desdenha de Jesus, pois seu olhar estava contaminado por preconceitos e ódio. Simão era um cego moral como tantos no mundo da religião. Jesus interrompe a ceia e faz a pergunta radical: “Simão, vês esta mulher? (Lc 7,44)”. Na resposta dada a Jesus está o necessário transplante de córneas. Ao dar a boa resposta nasce a visão transparente e evangélica. Um novo olhar nítido e cristalino. Uma perspectiva nova a ser assumida. Ver com o olhar de Deus que é o olhar da compaixão. Ver como somos vistos por Deus. Jesus vê o humano para além das aparências, opções sexuais, sociais e de classe. Vê a ternura e a piedade. Vê o amor. Vê a dor e sente o toque frágil de quem clama por amor. Jesus vê como se entrelaçam a fraqueza e o amor. Será perdoado aquele que ama muito e amado quem perdoa muito. Jesus nos convida a higienizar pupilas e córneas. Jesus oferece o seu colírio e pede uma adesão personalizada. Quando enxergarmos com o coração, emergirá a visão penetrante dos mistérios humanos e divinos.

Publicado na revista O Mensageiro de Santo Antonio, edição de dezembro de 2014.