A filosofia de Dom Helder

Inácio Strieder

Não vamos chamar dom Helder Camara de filósofo, no sentido acadêmico. Mas ele possuía uma transparente filosofia de vida. Uma filosofia cristã humanista. Nada do que é humano lhe era estranho. E quais são as preocupações humanas mais profundas? Buscar respostas em relação à humanidade, ao cosmos e ao absoluto que nos envolve. Dom Helder possuía uma compreensão cristã do ser humano. A partir desta antropologia se relacionava com todos os homens, buscando, para além de raças, etnias, castas, classes, gêneros, ideologias e religiões, uma vida digna para todos os seres humanos. Desejava do fundo de seu coração um século 21 sem miséria. Lamentava a falta de solidariedade, fraternidade e justiça entre os povos, dos ricos para com os pobres, do primeiro mundo para com os habitantes do terceiro mundo. Para ele, todas as guerras eram delírios loucos de homens desvairados. Os regimes e os indivíduos torturadores eram mais dignos de compaixão do que os torturados. É verdade, a dor era dos torturados, mas a vergonha, o nojo, o rebaixamento humano, ao estado mais vil da criatura, grudava nos torturadores e em seus mandantes.

Todos os seres humanos eram filhos do Deus único, criador do imenso universo, e presente na vida de cada um, e na natureza como um todo. Todas as criaturas vivas e não vivas, materiais e espirituais manifestam a grandiosidade de seu criador. Este Deus se manifesta no grande e no pequeno, Ele está para além do maior, e para aquém do menor. Nele estamos, nos movemos e somos.

Naturalmente, dom Helder, situando o homem nos horizontes do imenso universo e de Deus, não podia desgastar sua vida olhando apenas para as picuinhas do dia a dia no pequeno mundo de uma diocese. Pode-se dizer que ele se entendia como um “bispo” da humanidade. Viajava pelo mundo palestrando, pregando, dialogando e orando. No Oriente asiático foi ouvido e homenageado pelos budistas, na Europa cristãos luteranos e calvinistas o prestigiaram, entre seus diplomas existe um conferido por entidades do candomblé, na ONU falou a políticos das mais diversas ideologias. Sabia viver nos palácios reais e nas favelas. Mais de trinta universidades no mundo todo lhe deram o título de doutor honoris Causa. Em toda parte falava de dignidade humana, de justiça, de solidariedade de direitos humanos, de paz.

Ele mesmo era uma pessoa culta. Escritor, poeta, orador, educador, falava francês, inglês, espanhol, além da língua pátria. Alguém poderia perguntar: dom Helder era um gênio, ou donde lhe veio todo este dinamismo, e a habilidade de tanta mobilidade e sabedoria? Com certeza possuía dotes pessoais especiais, mas nada de extraordinário. Simplesmente levou a sério sua vida, e assumiu responsavelmente uma missão em sua vida. Ele mesmo dizia que o segredo de se conservar jovem era ter uma causa a que se dedicar. Desejava que cada um assumisse sua vida com os dons que Deus lhe concedia. Neste sentido, dom Helder não visava assistencialismos. Dizia que as pessoas eram pesadas demais para que as carregássemos nos ombros. Era preciso carregá-las no coração, i.e. dar-lhes oportunidades para conquistarem uma vida digna. E uma tal vida digna somente nasceria com educação, com trabalho, com justiça e solidariedade.

Dom Helder morreu, mas sua mensagem continua. Foi um homem que mereceu ter vivido na Terra. Pouco importa onde estejam seus restos mortais. O importante é o exemplo de vida que demonstrou, e as mensagens que escreveu. Helderiano, ou helderólogo não é aquele que alega ter vivido ao lado de dom Helder, ou ter participado de alguma equipe que ele criou. Prestigiar dom Helder em seu centenário não é carregar seu boneco pelas ruas do Recife, não é apenas fazer discursos elogiosos nas Assembleias ou no Senado da República, ou construir museus em sua memória. Respeitar dom Helder é muito mais. É optar por uma vida em que não se calunia, não se humilha ninguém, se respeita a todos e se busca a dignidade de todos os que não refletem esta dignidade em sua vida, é construir uma vida sem obscuridades. A filosofia de dom Helder não foi a filosofia das academias, escrita apenas em livros, mas uma filosofia da vida humana, com dignidade em todas as suas dimensões.

Fonte: Revista Missões