A passagem de um sábio

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Se me dissessem anos atrás, quando eu era jovem estudante de teologia, que um dia iria me encontrar frente a frente com Jürgen Moltmann, certamente não acreditaria. Ou ficaria tão deslumbrada e ansiosa que não conseguiria pensar em outra coisa. O pensamento do teólogo luterano Moltmann marcou profundamente minha maneira de fazer teologia. E foi objeto de vários cursos de pós-graduação que dei a meus alunos na PUC do Rio, onde leciono.

Sendo algo assim como um guru ou uma referência maior na teologia cristã contemporânea, necessariamente era colocado em posição distante, não facilmente atingível por meu desejo de aprofundar as álgidas questões que sua teologia refletia. Jamais poderia imaginar-me conversando com Moltmann frente a frente, ou trocando idéias com ele.

E no entanto, isto aconteceu. Convidado para um simpósio internacional organizado pelo Departamento de Teologia da PUC-Rio, Moltmann aceitou o convite. E veio. Alegre e prontamente, do alto de seus 85 anos de idade. E também fiel a seu afetivo compromisso com a América Latina. Durante muitos anos o teólogo de Hamburgo foi constante e periodicamente à Nicarágua. E não é a primeira vez que vem ao Brasil.

Jürgen Moltmann é um dos principais teólogos cristãos contemporâneos. Ele nasceu em 1926 em Hamburgo, Alemanha, dentro da Igreja luterana. Lutou na II Guerra Mundial, foi feito prisioneiro pelos ingleses e levado para um campo de concentração na Inglaterra. De 1945 a1948, esteve prisioneiro dos aliados na Bélgica e na Inglaterra. Foi durante a situação dolorosa da prisão que sua vocação teológica despertou. Esse homem formado em Matemática sentiu-se fortemente chamado a refletir sobre o sentido da vocação cristã. Voltando à Alemanha, em 1948, foi estudar teologia. A partir de 1952, atuou como pastor da Igreja Luterana. Desde 1967, foi professor de teologia sistemática na Universidade de Tubinga, na qual ainda ensina.

Ouvindo-o narrar sua trajetória e falar das questões que o apaixonaram e se tornaram o nascedouro de sua Teologia, Moltmann toca nas fibras mais profundas da condição humana: o sofrimento inocente, a violência que vitima, o envolvimento de Deus com o sofrimento absurdo e inútil da humanidade, a necessidade de falar desse Deus a partir da cruz de Jesus e de seu mistério pascal.

Ao ouvi-lo falar, lembrei-me da primeira vez em que li seu livro “O Deus Crucificado”. Levou-me às lágrimas e fez-me bater o coração. Impressionou-me não apenas pelo rigor e clareza da reflexão, como também pela paixão que marca o discurso e que testemunha a fé profunda de seu autor. Eu o li e reli durante muito tempo, dei aulas sobre ele e, a partir dele, escrevi textos tomando-o como base.

Ao ir a El Salvador no congresso de celebração dos 30 anos do martírio de Monsenhor Romero, o livro de Moltmann tocou-me desde outro ângulo. O coração saltou no peito quando o vi manchado de sangue, exposto no museu da UCA que guarda a memória dos seis jesuítas assassinados em 1989. Um deles lia “O Deus Crucificado” no momento em que foi barbaramente torturado e assassinado. Olhando o livro exposto na vitrine, vi o sangue do mártir misturar-se à reflexão sobre a Paixão de Deus brotada da teologia moltmaniana.

Perguntado sobre o foco de sua teologia hoje, Moltmann explicou estar voltando aos temas candentes do início de sua trajetória: a paixão de Deus e do mundo, a dor divina como sentido para a dor humana. Olhando-o e ouvindo-o, senti-me diante de um sábio. Ali estava um homem que falava não a partir do intelecto, mas da sabedoria. Sabedoria cuja fonte é o Espírito da vida que sopra onde quer e suscita luz e claridade sobre os dramas inexplicáveis da condição humana, ungindo-a com um Sentido maior que a tudo configura.

Ouvindo-o e vendo-o sentia-se a presença do sábio, aquele que conhece o seu Deus e cujo único desejo é crescer nesse conhecimento, inseparável do amor. Em meu coração, erguia-se uma silenciosa oração de louvor Àquele que suscitou no seio da comunidade eclesial uma testemunha da estatura de Jürgen Moltmann.