Assembleia Geral da CNBB e Concílio Ecumênico Vaticano II

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, [www.provinciasaopaulo.com]

A metáfora do Bom Pastor, aparentemente, resulta inadequada para a sociedade contemporânea, tão fortemente marcada pela urbanização, pelo pluralismo cultural e religioso, pela economia globalizada e pela revolução da informática. Mas sua interpretação pode ser sempre retomada, dada a riqueza do sentido universal. Três funções tinha (e tem) o pastor: encontrar bom pasto para o nutrimento do rebanho, defendê-lo dos ataques do lobo e outros animais ferozes e manter certa harmonia interna. È fácil dar-se conta que semelhantes funções, na sua complementaridade, viram-se reforçadas e entrelaçadas com a abertura da Igreja ao mundo moderno provocada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II. “O gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro”. (GS, nº 4).

Na celebração do cinquentenário do referido Concílio, as “mudanças profundas e rápidas”,  requerem dos pastores reunidos em assembléia geral,  aos pés de Maria e do Santuário de Aparecida, grande empenho por uma nova evangelização. “Nnova em seus conteúdos, em seus métodos e com novo ardor missionário”, como já nos alertava o Papa João Paulo II.

  1. A vida em primeiro lugar

A primeira função está diretamente ligada às reais condições de vida da população. Não apenas o alimento, mas também roupa e casa, trabalho e salário, saúde e lazer, estudo e segurança, terra e cidadania… O bom pastor preocupa-se não somente com a mera sobrevivência, mas com a qualidade de vida. Aqui a ação ético-religiosa se entrelaça com a ação social e política. O cruzamento da Gaudium et Spes com a Lumem Gentium, ambos documentos do Concílio Vaticano II, respectivamente sobre a pastoral e sobre a Igreja, torna-se eloquente a esse respeito. Mais do que nunca, a Igreja Católica, da mesma forma que outras Igreja e denominações religiosas, tem um papel fundamental no sentido de reunir esforços para que toda pessoa seja respeitada na sua dignidade humana.

Esta requer, antes de mais nada, uma base socioeconômica sólida e de larga duração, exigência que se revela especialmente no mundo do trabalho. O divórcio entre trabalho e emprego é causa de muita instabilidade e insegurança por parte de milhares e milhões de trabalhadores. Estes até que encontram trabalho, não há dúvida. Mas, quando não dispõem de qualificação adequada, correm o risco de trabalhar desvinculado de um emprego estável, registrado em carteira, com todos os direitos assegurados. Vivem à caça de “bicos” eventuais, ao sabor das ondas da economia. Um enorme “exército de reserva” (Marx) que não mora, acampa de acordo com as necessidades do capital. Desempregados, ou sempre ameaçados de o serem, como podem pensar num projeto futuro de longo alcance, que envolve, por exemplo, casamento, casa, estabilidade financeira…

  1. Lobos e cordeiros

O entrelaçamento das diversas dimensões da atividade pastoral, entretanto, é ainda mais evidente na segunda função do pastor. Defender o povo dos inimigos é, antes de tudo, identificá-los e conhecer-lhes a periculosidade. Quais são e até onde vai a exploração e a ganância de determinados agentes econômicos. Como se comportam os responsáveis de alguns setores da produção, onde ainda se verificam condições precárias de trabalho, de salubridade e de segurança? A voracidade do lucro e do capital pode destruir não só os recursos naturais e o bom “pasto” das “ovelhas”, mas também condená-las à pobreza e exclusão social.

Desde seus primórdios, a economia capitalista, de filosofia liberal ou neoliberal, gera lobos e cordeiros. A pretensa liberdade engendra o monstro liberalismo, pois se trata de uma liberdade entre forças desiguais. De um lado, os senhores das terras, das fábricas e das máquinas; de outro, os trabalhadores, destituídos dos meios de produção, obrigados a vender a sua força de trabalho. Numa palavra, lobos e cordeiros numa disputa desigual pelo mesmo terreno, tubarões e sardinhas dentro de um mesmo tanque, raposas e galinhas no interior do mesmo galinheiro. Não é difícil perceber como semelhante estado de coisas fortalece os poderosos e enfraquece os indefesos.

É neste contexto de confronto entre capital e trabalho (implícito ou explícito) que se faz necessária a presença do pastor. Ele tem a tarefa de afugentar os lobos e proteger as ovelhas, como se nota amplamente nos documentos da Doutrina Social da Igreja, desde a Rerum Novarum, publicada por Leão XIII em 1891, com o subtítulo Condição dos operários. A Gaudium et Spes, constituição pastoral do Concílio Vaticano II, mantém essa tradição de colocar-se energicamente ao lado daqueles cuja vida está ameaçada. Baste-nos citar as palavras de abertura do documento: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Jesus Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, nº 1).

O mais grave, a esta altura, é quando o bastão do pastor (ou seu báculo), em lugar de perseguir os lobos em sua ferocidade, se abate impiedosamente sobre os ombros das ovelhas. Veja-se a esse respeito as palavras e discursos dogmáticos e despóticos de alguns pastores, cujo moralismo estridente esconde não raro uma conduta ambígua, para dizer o mínimo. Desvinculado do contexto histórico e social em que vivem os trabalhadores e suas famílias, limitam-se a bordejar os pobres, já feridos por condições de vida precárias e sem esperança de melhora.

  1. Unidade na pluralidade

Quanto à função de contribuir para a unidade do “rebanho”, não é a última nem a menos relevante. De fato, de que serve contar com bom alimento e segurança, se o inimigo se instala no interior da própria casa! É o que ocorre hoje em não poucas famílias e grupos. A competição e a concorrência, próprias das leis cegas do mercado, invadem a vida privada. Forma-se uma cadeia perversa que rebentará no seu elo mais fraco. Condições de trabalho adversas, salários insuficientes, além de transporte público precário, se acumulam como ingredientes de uma violência reprimida. Esta acaba recaindo, por vezes, sobre as pessoas mais próximas, aquelas que mais amamos. De longe, as principais vítimas desse mecanismo circular e vicioso são as mulheres e crianças. Disso resulta o alto índice de agressão intra-familiar, perpetrada quase sempre pelo homem, sem desconhecer outros fatores de ordem passional e psíquica.

A unidade do “rebanho” pressupõe a pluralidade das “ovelhas”. Num mundo em que praticamente tropeçamos dia-a-dia com “os mil rostos do outro”, não é fácil incorporar sua presença aos nossos hábitos e costumes. O outro – seja ele de raça ou povo, sexo ou cor, credo ou bandeira – sempre constitui um ponto de interrogação. Interpela, levanta questionamentos, desperta suspeita e exige mudanças. Mas, de um ponto de vista evangélico, não deve aparecer como um problema, e sim como uma oportunidade de intercâmbio e recíproco enriquecimento. Vale o confronto dos filósofos Sarte e Levinás: enquanto para o primeiro o “outro é o inferno”, para o segundo “o outro é o caminho para chegar a mim mesmo”.

Os parágrafos acima sugerem o contexto da Assembleia Geral da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – o grande encontro anual e nossos pastores, neste ano em que o Concílio Vaticano II completa 50 anos. Em suas mãos a tríplice tarefa de contribuir, junto com outras instituições,  para a qualidade de vida da população brasileira; de denunciar os abusos de alguns políticos e algumas autoridades, os mesmos que deveriam defendê-la; e de anunciar a urgência e necessidade de mudanças que levem à construção de uma sociedade justa e fraterna, sustentável e solidária, sinal visível do Reino de Deus.