Ausência de uma presença

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Quantas vezes nos sentimos afastados de Deus, sós, órfãos, perdidos e abandonados! Do lado de fora de sua casa, na soleira da porta, longe de sua presença. Trabalhamos, caminhamos, encontramo-nos, fazemos nossas atividades normais, enfim, continuamos levando adiante a rotina do dia-a-dia, mas com um gosto amargo na boca e na alma. A existência adquire um estranho sabor de nulidade, de angústia e de remorso. Para o explicar, não basta a metáfora do deserto e da terra árida e ressequida, como nos lembra o Livro dos Salmos. A figura de linguagem é válida, sem dúvida, mas nos damos conta que há algo ao mesmo tempo mais profundo e misterioso, mais geral e mais particular. Tampouco são suficientes as tradicionais imagens do vazio, da solidão, do silêncio, da indiferença ou da noite escura – de acordo com a experiência narrada em verso e prosa pelos místicos. Para além de tudo isso, que não deixa de ser verdadeiro, trata-se simultaneamente de algo mais simples e mais complexo.

Deserto, vazio, solidão, noite escura, indiferença, silêncio… Sem dúvida, traduzem em parte a sensação que invade todo o nosso ser, até as entranhas mais íntimas e ocultas. Mas só em parte! Todas essas palavras representam noções que estão aquém da realidade vivida, experimentada no corpo e no espírito. O que prevalece de mais nítido é um sentimento cujo sentido os conceitos não conseguem expressar. Uma ausência inexplicável e indefinida, ou melhor, ausência de uma presença familiar, pessoal e insubstituível. A falta pura e simples não de algo ou de alguém (com letra minúscula), mas de Alguém (com maiúscula). No meio interpõe-se o muro inexpugnável do pecado e da culpa. “No meio do caminho tinha uma pedra…”, diz o poeta Carlos Drumond de Andrade. A atmosfera torna-se pesada, irrespirável, como se faltasse oxigênio no sangue que, pouco a pouco, passa a nutrir-se do próprio veneno. Pior, leva-o através das veias a um organismo que se torna cada vez mais necrosado.

Deserto, sim, mas sem perspectiva de um oásis no meio das ondas de areia, de um ponto de encontro ou encruzilhada para descansar e recuperar as forças; vazio, sim, mas como um abismo de boca escancarada, sem fundo, que tudo devora e faz desaparecer no labirinto do nada e do absurdo; solidão, sim, mas insípida e intolerável, inteiramente despovoada de lembranças passadas e de planos para o futuro; noite escura, sim, mas feita de trevas em que todas as estrelas se apagaram num céu imenso, frio e longínquo, surdo e mudo; indiferença, sim, mas de caráter ativo e agressivo, que tolhe a capacidade de reação e de retomada; silêncio, sim, mas como mutismo cerrado e estéril, sem a mínima possibilidade de produzir uma única palavra viva, criativa, libertadora. Sentimo-nos sufocados por essa ausência, a exemplo do peixe fora d’água.

Não se trata somente de terra árida e ressequida, mas de um terreno abandonado aos espinhos, às pedras, aos animais de rapina e às ervas daninhas. Terreno produtivo, com água em abundância, onde outrora cresceram árvores e plantas com raízes fundas e de boa qualidade, e que já produziu não poucos ramos e folhas, flores e frutos. Mas, sem os devidos cuidados do agricultor, voltou a ser dominado pela mata inculta. Pouco a pouco, a colheita viu-se sufocada por rebentos nocivos que lhe roubaram toda a seiva e a energia. A selva voltou a imperar, robusta e viçosa como sempre, mas com uma força incontrolável e por isso perniciosa.

Agricultor desleixado e preguiçoso, concluirão alguns! Nada disso! O agricultor – Deus – permanence sempre firme, fiel e vigilante, à espera de entrar em campo, de colaborar na obra da história pessoal ou coletiva. Caminha silenciosa e amorosamente ao nosso lado. O problema é que o terreno – coração humano – fechou-se sobre si mesmo e fechou-lhe todas as entradas, impedindo qualquer ação da parte d`Ele. Na medida em que o Senhor respeita até as últimas consequências o dom da liberdade de seus filhos, que é sua maior dádiva, resta-lhe bater à porta e esperar que esta lhe seja aberta. Em caso negativo, nada poderá fazer, pois jamais rompe o pacto da liberdade. Criador, onipotente e todo-poderoso, sim, mas ao mesmo tempo impotente e frágil diante do “não” de suas criaturas, uma vez que sua única arma consiste em amar, e amar de forma livre, total, incondicional. Ora o amor costuma ser belo como as flores e as espigas, mas, também como elas, permanece exposto ao vento forte da violência, das adversidades e das contradições da vontade humana.

O perdão e a misericórdia divinas se batem contra o muro do mal e do pecado humanos. Repete-se, uma vez mais, o desencontro e o drama colossal da cruz. Símbolo da maior e mais brutal violência contra um inocente, ela tornou-se igualmente símbolo do amor e da entrega sem medidas. À tortura mais cruel e sem precedentes na história humana, Deus responde com o perdão. Essa é sua “vinganca”! O gesto do perdão (“Pai perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”), como que reaproxima o Pai do Filho abandonado. Dessa forma a cruz – objeto desumano e despovoado da presença divina (“maldito o que pende do madeiro”) – torna-se o símbolo por excelência do amor de Deus, onde Este se revela em toda a sua bondade infinita e incomensurável. O contraste entre o pecado e a violência humana, de um lado, e, de outro, o perdão e amor divino, se faz tão forte, tão flagrante e tão eloquente que uma luz nova explode no alto da cruz, como num choque elétrico entre a corrente negativa e positiva. Um brilho cuja intensidade e esplendor antecipa a glória da ressurreição. Tanto amor e tanto ódio, quando se cruzam e se contradizem reciprocamente, mostram a cruz como sinal de contradição: “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos”. Ou ainda “a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem; mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-25).

Se, por uma parte, Deus permanence fiel e à espera do “sim” humano, por outra, nossa indiferença frequentemente recusa abrir-lhe a porta. A terra, em nossa existência, torna-se então inculta não por sua ausência, mas por nossa negligência. Disso resulta a “ausência de uma presença” que empobrece e embrutece o terreno cultivado. Ou seja, somos nós que ignoromos sua presença, fazendo dela uma ausência, ou a ausência de Alguém com quem estavamos acostumados a conviver. Depois que a alma se acostuma a caminhar sob a luz de Deus, ignorar sua presença torna mais pesado o ritmo dos passos, mais nebuloso o rumo a ser seguido e a própria caminhada perde o significado profundo.

Resta a conclusão de que a oração, a meditação e a contemplação – o processo diário e incansável de buscar a presença de Deus – torna-se condition sine qua non na vida de quem conheceu sua face radiante, ainda que por um só segundo, um relâmpago de luz e paz. Sem isso, recaímos na sensação de abandono, não por parte de Deus, evidentemente, mas por parte da própria alma empedernida. Retorna o gosto amargo na boca e na alma, sede que só pode ser extinta na água cristalina da nascente. Não basta a posse de um copo de água, o melhor é conhecer o caminho que leva à fonte.

 

Washington, USA, 10 de outubro de 2013