Crime na universidade

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Foi Leonardo Boff quem me anunciou, com voz embargada, ha exatos vinte anos atrás: “Mataram Ellacuria”. Custei a realizar o que me dizia. Pouco a pouco sai de meu espanto e ouvi minha voz perguntar, longe e apesar de mim mesma: “E o Jon Sobrino?” Leonardo me contou que escapara por estar na Tailândia, dando um curso que ele, Leonardo, lhe havia pedido.

Senti o alivio de saber poupado o que era mais amigo, mais próximo, mas uma enorme perplexidade diante do acontecido. Naquela ocasião conhecia pouco sobre Ellacuria. Só me lembrava de sua tremenda simpatia e sua brilhante inteligência quando o conhecera rapidamente em Madrid, aonde fora acompanhando a Lina Boff, colega de teologia e Irma de Leonardo, que iria participar de um programa na TV espanhola. Encantou-me aquele basco de sorriso fino e tiradas brilhantes, que falava com paixão e exatidão sobre a opção pelos pobres e a teologia da libertação.

Corria o ano de 1989 e aquele era o assunto em pauta. A Teologia da Libertação era discutida e controvertida, mas chamava atenção e atraia os olhares. E Ellacuria, como reitor da Universidade Católica de El Salvador, não perdia oportunidade de viajar e ocupar todas as tribunas que se apresentavam para falar da grande prioridade em que consistia naquele momento a libertação de todos os oprimidos do mundo. Lembrava-me do grande “banner” que vira com sua foto, microfone na mão e gesto inflamado com o braço levantado, dizendo a celebre frase: «”É preciso reverter a historia e lançá-la em outra direção.”

Com sua morte, vieram a tona muitas outras grandes e importantes coisas sobre ele: grande filósofo, maior especialista no pensamento de Zubiri, – o famoso filósofo espanhol, – em todo o mundo; reitor da UCA; presença marcante em El Salvador, país pequeno e triturado por cruel ditadura, com o povo em extrema pobreza submetido a esmagadoras forças de opressão; interlocutor privilegiado de Monsenhor Romero, o grande bispo, mártir, assassinado nove anos antes, enquanto celebrava a Eucaristia.

Agora ele jazia morto, com seus outros seis companheiros, a senhora que trabalhava na residência jesuíta e sua jovem filha de dezesseis anos. Depois de barbaramente torturados, foram todos mortos, sendo encontrados horas depois no jardim da residência. Jon Sobrino, de longe, seria avisado do ocorrido, transformando-se em uma perpétua testemunha de um crime do qual também seria vítima se ali estivesse. Condenado a viver para sempre com o desconforto dos sobreviventes, passaria a vida dando testemunho de seus irmãos e não deixando que sua memória caísse no esquecimento e no olvido, assim como a de Monsenhor Romero.

Ellacuria, basco de nascimento, salvadorenho de nacionalidade, assim como quase todos os outros jesuítas assassinados naquela noite sabiam do risco que corriam. Sabiam os perigos que comporta o seguimento radical de Jesus de Nazaré quando e levado a sério e tomado à risca, sobretudo naquilo que diz respeito a luta contra as injustiças de todo tipo. Cada vez que viajava, Ellacuria era avisado, de uma ou de outra maneira, que voltar a El Salvador implicava risco de vida certo. Desta vez sobretudo, o clima no país era quente e inseguro. Muitos lhe aconselharam não voltar.

Voltou. Voltou porque acreditava na missão que assumira mais que na própria vida. Voltou porque dar brilhantes conferencias de filosofia na Europa e alhures era algo que fazia com grande competência, mas não implicava o sentido principal de sua vida. Voltou porque era um homem consagrado a Deus e aos outros e tinha uma aliança de vida e destino com aquele povo ao qual servia.

À sua espera estavam as armas e as balas dos assassinos que entraram na residência na calada da noite, encobertos pela escuridão e escondidos pelo silencio. Sua boca foi calada, mas sua vida nunca foi tão eloqüente e inspiradora. Tal como escreveu um companheiro jesuíta sobre sua morte: “Querido Ellacu, agora sim, acreditamos em você, ao te ver assim, abatido e caído ao chão como Jesus. Perdão por havermos dito que você falava a partir do ar condicionado da UCA.”

Vinte anos depois, o crime bárbaro que resultou no martírio dos seis jesuítas e das duas leigas colaboradoras da residência continua impune. Todos os esforços de apuração não conseguiram ainda trazer à luz as responsabilidades e punir os culpados. O sangue dos mártires, no entanto, fala mais alto e ensina ao mundo para que serve a Universidade de confissão cristã. Para fazer crescer o saber e o conhecimento, sim. Mas também e inseparavelmente, para lutar com todas as forças, até o dom da própria vida, para que a história seja revertida e lançada em outra direção. Ignácio Ellacuria e seus companheiros estão vivos em Deus e iluminam essa história tão cheia de obscuridades mas que pode ser história de salvação. Oxalá continuem vivos também e não menos em nossas memórias e em nossas vidas.