Crise do evangelho neoliberal

Claudemiro Godoy do Nascimento *

O mundo assiste atordoado o sobe e desce das bolsas de valores em todos os países, em especial, nos Estados Unidos e no velho continente. São números, alta do dólar, queda nas transações. Enfim, a bola da vez se chama “crise”. Mas o que seria essa crise? O sociólogo português Boaventura de Souza Santos chama-nos atenção para olharmos essa crise numa perspectiva da ampliação do Estado e, talvez, a minimização do mercado total.

Até pouco tempo atrás, o deus “mercado” evangelizava o mundo e as consciências afirmando as teses de Hayek e Friedman: “menos Estado, mais mercado”. As teses do Estado Mínimo que para alguns não passa de lenda conseguiu inserir-se no cotidiano das pessoas e ainda temos representantes desse movimento em todos os setores da sociedade globalizada, seja nas universidades, nos governos, nos partidos e, até mesmo, em movimentos sociais de direita. O chamado pensamento único tomou corpo e permitiu uma onda gigantesca de despolitização e de individualismo jamais vistos na história da humanidade. As conseqüências desse modelo de sociedade pode ser percebida na dicotomização da juventude que não consegue, raras exceções, politizar-se e participar dos debates na esfera pública. Tudo se resume ao consumo que se torna uma espécie de “prece” e ato religioso realizado pelo fiel ao deus mercado que tudo cria e recria. Quem participa do mercado já se encontra no paraíso, “onde corre leite e mel” das compras em shoppings ou em novas ágoras fast-food (Macdonald’s) onde somente os que podem pagar, podem comer o banquete sagrado e antinutritivo. Diante disso, não há necessidade de política, de participação, de Estado e, muito menos, se pensar no futuro da Casa Comum. Tudo deve ser minimizado para que o Mercado seja maximizado e glorificado nas alturas. Essa lógica nos faz lembrar: “Gloria in excelsis Mercatu”.

A crise não se encontra no Estado, pelo contrário, está no mercado. O mercado entra em crise devido às dívidas dos norte-americanos com o setor imobiliário e com os financiamentos para se pagar as dívidas o problema tornou-se maior ainda atingindo países da Europa, da Ásia e da América Latina. O efeito cascata a cada dia toma proporções que não sabemos onde irá parar. Contudo, uma questão podemos evidenciar neste mar de sujeiras: agora o mesmo Estado é chamado para socorrer os bancos em falência, chamado para socorrer os aflitos e moribundos do mercado total que até pouco tempo atrás “arrotavam” barbáries contra o Estado.

Não era o Estado um centro de corrupção e que não possuía a noção de gerenciamento necessário para administrar a coisa pública. Não era o Estado o culpado por gastar demais com políticas sociais emancipatórias. Não era o Estado o detentor da insuficiência da qualidade administrativa. Pois é, agora é o Estado que socorre os pregadores do evangelho neoliberal.

Ainda não consigo compreender os motivos que levam o Estado a socorrer o deus “mercado” em tempos de crise generalizada. Não seria o momento de buscar soluções comunitárias, coletivas, populares e estatais para que minimizar a lógica neoliberal do mercado total? Há algum tempo, alguns governos já anunciam que a lógica do mercado é insuficiente e mesquinha, pois impede que haja uma real redistribuição de renda entre os mais pobres da sociedade.

Não se trata de defender a tese da “estadolatria”, pelo contrário, precisamos de um Estado Popular onde os princípios democráticos estejam realmente a serviço de todos e todas. O Estado no passado cometeu erros de ambos os lados, seja no nazi-fascimo, seja no comunismo socialista das antigas Repúblicas Soviéticas. E ainda comete erros quando se curva em adoração ao Mercado. Não seria o momento de romper definitivamente com a doutrinação do mercado alavancada de forma mais feroz desde “Consenso de Washington”?

Como dissemos, alguns governos da América Latina ousam em popularizar e politizar novamente o Estado. Os defensores do evangelho neoliberal dirão: é totalitarismo, é comunismo, é populismo, é estadolatria, é desrespeito com o mercado etc. Acredito que sejam alternativas de Estado que surgem e que ampliam a noção do público. Assim, governos como os de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa se colocam na contramão da história marcada pela hegemonia do mercado e da evangelização neoliberal. Ao mesmo tempo, se tornam referenciais para os povos do Sul em promover amplas discussões que destaquem a soberania nacional de cada país resolver sua forma de governar. Não temos dúvidas de que os governos da Venezuela, da Bolívia e do Equador sejam populares. A participação nos debates e na construção de plataformas políticas é realizada por todos os setores.

No Paraguai, a recente eleição do bispo católico Fernando Lugo como Presidente é um sinal claro de que a “paciência histórica” irá ceder a uma ampla frente de politização na América Latina. Espera-se de Fernando Lugo a construção de um governo popular e que venha defender os interesses guaranis. O rompimento com os modelos políticos arcaicos onde o Estado se torna refém do capital é uma antinomia do passado que deve ser urgentemente superada.

Mesmo assim, continuarão afirmando: estes governos não são democráticos. Com isso, perguntaria aos sacerdotes neoliberais: seria democrático um Estado ou um governo se curvar ao deus mercado sem consultar o povo? Seria democrático minimizar o Estado com privatizações de bens públicos sem consultar a sociedade? Seria democrático se vender ao mercado para ampliar interesses privados e especulativos do capital? Se isso for democracia, prefiro mesmo a politéia, como já defendia o filósofo grego Aristóteles. Para Aristóteles, a oligarquia, tirania ou a democracia não se ocupam com o interesse público.

Dessa forma, percebemos também que o mercado não possui nenhum interesse público, muito pelo contrário, seus interesses são estritamente privados e destinados a alguns poucos especuladores que se tornam cada vez mais aptos à lógica da acumulação do capital em detrimento de milhões de pessoas pelo mundo todo que estão condenadas ao esquecimento e aos porões da sobrevivência.

A crise do mercado que já permitiu a falência de alguns bancos pelo mundo afora pede clemência ao Estado. Os homens de negócio que possuem influências nos governos pedem e conseguem o financiamento do Estado para manter-se vivos no cenário. Até quando? Não sabemos. Até o momento os países que fizeram generosas doações ao mercado são defensores do evangelho neoliberal. Mas, como já dissemos, os países do sul estão se articulando em novas formas de pensar o público, a governança e a soberania. Assim, esperamos que novas alternativas surjam como já se preconiza neste novo cenário que não mais será global, mas, “glocal” (global no local e local no global). Por outro lado, novamente, teimamos e não nos cansamos em perguntar: Será o fim da evangelização neoliberal e do deus mercado?

* Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação. Doutorando em Educação. Professor Assistente I da Universidade Federal do Tocantins – UFT