Direitos humanos e humanos direitos

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

O Dia Internacional dos Direitos Humanos é celebrado anualmente em 10 de dezembro. Por quê essa data? Porque justamente nesse dia, no ano de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assinada por nada menos do que 58 países, o objetivo da declaração era, por um lado, o de combater todo tipo de preconceito, discriminação e xenofobia e, por outro, após os sangrentos conflitos da Segunda Guerra Mundial que deixaram um rastro macabro de milhões de mortos e mutilados, promover a paz entre os países e em toda a humanidade.

Hoje, como sabemos, a cultura dos direitos humanos se estende aos mais variados grupos, setores, classes, extratos sociais, minorias étnicas, situações e campos da existência humana, sem falar de cada ser humano individualmente único e irrepetível. Em outras palavras, povos e nações, bem como populações inteiras abrigam-se nesses amplo chapéu que é a defesa, o respeito e a garantia dos direitos humanos. À cultura do ódio ou da intolerância, da violência ou da guerra, do individualismo ou do nacionalismo exacerbado – sobrepõe-se a ideia de uma convivência pacífica. À cultura da indiferença (Papa Francisco) e do consumo frenético e indiscriminado, centralizada num hedonismo egocêntrico – sobrepõe-se a solidariedade com as vítimas do mercado total e da economia globalizada.

Mas, entre pessoas, povos e nações diferentes, não bastam a tolerância e a coexistência pacífica. Não basta levar em conta apenas o conceito de multiculturalismo. Não basta o lado quantitativo ou exterior do pluralismo, seja este de caráter religioso ou cultural, seja de natureza política ou ideológica. Não basta cruzar e recruzar, quase que diariamente – na rua e no trabalho, na televisão ou na Internet – com os “mil rostos do outro”. Não basta conhecer, observar e admirar os costumes e a visão de mundo de outros seres humanos, como se o globo não passasse de um gigantesco teatro onde as pessoas desfilam no palco iluminado, ao mesmo temo como atores e espectadores de vidas exóticas. Ou pior ainda, como se todos fizéssemos parte de um colossal zoológico, onde, simultaneamente, observamos e nos deixamos observar em nossos comportamentos estranhos um ao outro. Em uma palavra, não basta a letra morta da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É preciso um passo adiante!

O espírito da Declaração exige um salto qualitativono relacionamento com o outro e diferente. Requer escuta e atenção, empatia e compreensão, aceitação e diálogo… Nisto encontra-se a chave do verdadeiro encontro. Não um monólogo entre dois surdos ou dois mudos indiferentes enre si, mas o intercâmbio respeitoso de ideias, a argumentação racional e sadia, o confronto dialógico de corações, mentes e almas. O segredo desse encontro é que os valores de cada pessoa ou cultura, apesar de diferentes (ou precisamente por isso) se enriquecem reciprocamente. Ao dialogarem entre si, tendem a crescer, a se purificar e a se depurar um ao outro. No debate aberto, sincero e corajoso, incorporam novas ideias e filtram impurezas acumuladas. Se é no confronto que se constrói a própria identidade, esta aperfeiçoa sua imagem (faz, desfaz e a refaz) diante do espelho que é a face do outro. No dizer de Martin Buber, o encontro só é possível entre diferentes!

Um novo conceito entra em cena: o de interculturalismo. De fato, enquanto o multiculturalismo pressupõe a coexistência mais ou menos pacífica entre pessoas e povos, costumes e culturas diversas, o interculturalismo passa necessariamente pelo diálogo e pelo confronto, onde ambas as partes saem mutuamente questionadas e enriquecidas. No primeiro caso, as diferenças se justapõem, convivem lado a lado, toleram-se uma à outra, numa espécie de mistura entre água a azeite – mas não mudam absolutamente nada da sua visão de mundo e de seu comportamento. No segundo caso, ao contrário, as diferenças se entrelaçam e se interpelam, uma buscando contemporaneamente aprender e enriquecer a outra. Aqui cada momento de diálogo muda, transforma, faz crescer. Não se trata de mera justaposição, mas de encontro de almas e culturas, onde cada uma se abre aos valores da outra. Como ambas constituem uma mistura de água e sede ou de luz e sombra, ambas têm a ganhar com o intercâmbio. Com razão lembrava o filósofo francês Emanuel Levinás que o caminho para mim mesmo passa pelo outro, enquanto H.J.Gadamer, filósofo alemão, insistia que o outro tem mais a dizer sobre mim do que sobre ele mesmo.

A conclusão é que o espírito mais profundo da cultura dos Direitos Humanos assenta-se sobre a sabedoria e a grandeza de Humanos Direitos. Estes, numa conditio sine qua non, preparam o campo para a conquista, o respeito e a garantia à dignidade de cada pessoa humana, a qual, por sua vez, constitui o fio condutor da Doutrina Social da Igreja. Aqui, porém, mais do que subordinar a primeira expressão à segunda ou fazer um jogo de palavras, o acento deve recair sobre uma dinâmica dialética entre os dois aspectos da questão. Se, por um lado, os direitos humanos requerem a existência de humanos direitos, por outro, estes só podem proliferar num ambiente livre, aberto e solidário com todas as pessoas, povos e culturas. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a cultura dos direitos humanos engendra as condições para o surgimento de humanos direitos, estes últimos pavimentam o terreno para o fortalecimento daquela. Direitos humanos e humanos direitos são duas faces da mesma moeda.

Nesse terreno, o joio se compõe de discriminação, preconceito, racismo, xenofobia, perseguição, intolerância, fundamentalismo (político, religioso ou ideológico)… Enquanto o trigo encontra-se na abertura dialógica entre as pessoas, para usar o conceito de Paulo Freire em seus livros Pedagogia do oprmido e Educação como prática da liberdade. Semelhante abertura ao outro ou diferente dá início a uma espécie de movimento espiral de compreensão e respeito, o qual, a partir de um encontro eu-tu como ponto central, expande-se centrifugamente em todas as direções e a todas as relações humanas. No centro, no coração, está a pessoa humana capaz de abrir-se e de escutar, de dar e receber, de ensinar e aprender. É nesse caminho de mão dupla que se levanta o edifício dos Direitos Humanos, independentemente de sexo, cor, raça, língua, credo, nação, bandeira, ideologia, costumes, cultura…

É igualmente esse ponto central – encontro eu-tu – que dá origem ao verdadeiro conceito de evangelização. Também neste caso a Boa Nova do Evangelho pressupõe e ao mesmo tempo engendra mulheres e homens novos. Instala-se uma dinâmica espiral entre a conversão pessoal e as transformações de ordem social, econômica, política e cultural. Por uma parte, mulheres e homens convertidos abrem o caminho para a Boa Notícia, por outra, a evangelização alarga as oportunidades para novas conversões. Os dois aspectos são indissociáveis, fazem parte de um único processo evangelizador.

 

Roma, Itália, 10 de dezembro de 2013