Economia e Vida (VII): o lucro e a ambigüidade

Jung Mo Sung

Continuando a reflexão sobre o tema da CF deste ano, quero continuar a discussão colocada no artigo anterior, sobre um novo tipo de coordenação da divisão social do trabalho (DST), a partir de uma experiência pessoal.

Uns vinte anos atrás, eu era professor em um curso superior de teologia que funcionava à noite nas dependências de uma Igreja no centro da cidade de São Paulo. O curso, com duração de cinco anos, era muito bom, tanto em termos de corpo docente, quanto os estudantes (mais de duzentos), compostos de leigos/as e religiosos/as, mas as dependências eram bastante precárias. Um dos maiores problemas era a falta de uma “cantina” onde o pessoal pudesse tomar café e comer algo no horário do intervalo.

Uma noite, uma das estudantes chegou com uma caixa de isopor cheio de salgadinhos e garrafa de café e começou a vender no horário de intervalo. O pessoal gostou muito. A menina precisava de dinheiro para ajudar a pagar a faculdade e essa iniciativa dela atendia a uma necessidade (demanda) do grupo. Isso foi possível porque havia liberdade para tomar essa iniciativa econômica.

Em uma das aulas de “Teologia e Economia” que eu dava, a questão do lucro foi objeto de discussão e a maioria dos/as alunos/as, que era da linha da Teologia da Libertação, foi frontalmente contra o lucro dizendo que isso era anticristão. Para discutir diferentes tipos de lucro, diversas formas de apropriação do lucro e a necessidade da existência de lucro na economia, eu usei o exemplo da moça que vendia os salgados, que era dessa classe. Perguntado sobre se ela teria tomado a iniciativa de fazer e de trazer no ônibus os salgados e café se não tivesse a possibilidade de obter algum lucro, ela, é claro, respondeu: não! É a possibilidade de obter ganhos que leva a alguém ou a grupos a tomarem iniciativa econômica de risco.

A liberdade de tomar iniciativa econômica gera mais rapidez e eficiência na resposta a demandas e necessidades ainda não satisfeitas. O problema é que isso, com o tempo, gera desigualdade social que pode desembocar em injustiça social e exclusão e a dominação dos mais ricos e poderosos sobre o restante da sociedade.

A discussão então passa para se essas iniciativas privadas são necessárias ou não na sociedade. Em comunidades pequenas antigas, de economia simples, as decisões sobre o que, como, quanto e para quem produzir podiam ser tomadas em discussões coletivas ou no “conselho de anciãos”. Mas, em sociedades amplas, de economias complexas, a discussão coletiva sobre todos os assuntos econômicos não é possível. A saída apresentada pelo socialismo de modelo soviético para evitar a desigualdade social que nasce da “liberdade do mercado” foi a de centralizar todas as decisões econômicas no Estado, sem liberdade para que indivíduos ou grupos privados tomassem iniciativa econômica.

O problema é que o Estado e nem outra instituição têm condição de conhecer todos os fatores que compõe a vida econômica e social da população, da sociedade e da natureza. Mas, se tudo (incluindo desde a construção de grandes usinas geradoras de energia até que tipo de sorvete ou suco vai se vender em uma lanchonete) depende do comitê de planejamento do Estado, a ineficiência toma conta e as necessidades cotidianas da população passam a não serem atendidas. Por ex., no tempo da União Soviética, até uma mudança no sabor da torta vendida no interior distante precisava da autorização do comitê de planejamento econômico de Moscou. Pois, a mudança de maçã para cereja no recheio da torta altera a cadeia produtiva e exige mudança no planejamento geral da economia. Quando a autorização chegava, o pessoal já tinha desistido da torta há muito tempo. É fácil entender que, aos poucos, a ineficiência vai tomando conta também de setores mais estratégicos da vida econômica, social e política do país.

Essa é a razão que os neoliberais mais usam para defender o extremo oposto: toda a economia deve estar subordinada somente às leis do mercado, onde os agentes econômicos (investidores, produtores, trabalhadores e consumidores) teriam a liberdade total para a tomada de suas decisões. Só que à custa da exclusão e injustiças sociais, que consideram como “sacrifícios necessários” para o progresso.

É claro que a grande maioria das Igrejas cristãs e de grupos de cristãos que lutam contra a exclusão social e a deterioração do meio ambiente não aceita a tese neoliberal, ou a versão não tão neoliberal que está dominando o discurso econômico global hoje, como também não aceita o socialismo do tipo soviético ou chinês. Então, qual é a alternativa?

Uma tentação é propor outro modelo “puro” baseado na solidariedade entre os seres humanos e esses com a natureza. Só que a solidariedade, ou harmonia, funciona aqui como critério ou princípio ético, mas não serve como mecanismo concreto para a coordenação da DST e para tomadas de decisões econômicas. E não discutir modelos alternativos concretos é deixar que o mercado continue sendo a principal ou única forma de coordenar as decisões e ações econômicas em escala global.

Eu penso que devemos abandonar a busca de “soluções puras” e assumir que a ambigüidade e contradições são partes da condição humana e que, portanto, devem também estar presentes nas propostas de alternativas. Em outras palavras, devemos pensar um modelo econômico-social onde o Mercado, o Estado e a Sociedade Civil estejam em relação de tensão e conflito permanente, para que nenhuma dessas lógicas possa se tornar a única na sociedade. E isso exige a ver a ambigüidade e conflito como valores sociais e humanos. (a continuar)