Economia e Vida (XI): economia solidária e o reinado de Deus

Jung Mo Sung

No artigo anterior eu afirmei que a luta pela vida das pessoas concretas sempre começa no nível das interrelações humanas e sociais, isto é, no nível micro-social. A luta pela nossa vida e a experiência de compaixão que leva a solidariedade sempre se dão em contextos locais, onde as pessoas interagem entre si e com a natureza. A noção de sociedade ou de macro-economia é resultado de uma abstração intelectual. Nós só chegamos a descobrir a noção de sociedade ou de estruturas econômicas quando percebemos que as “causas locais” ou as intenções das pessoas não são mais suficientes para explicar os acontecimentos que afetam as nossas vidas. Ninguém jamais viu “a sociedade”. Nós vemos pessoas, prédios e outras coisas, mas não a sociedade. Sabemos que a sociedade existe, que vivemos dentro dela, mas não a vemos com os nossos olhos. Podemos dizer que a vemos com a nossa “cabeça”, porque temos internalizada em nossas cabeças a noção de sociedade.

É no âmbito micro-social das relações humanas e sociais concretas que surgiram e surgem os projetos de economia solidária. Entre as características dos mais diversos tipos de projetos econômico-sociais que fazem parte do que hoje se chama de economia solidária, podemos destacar: a) a solidariedade ou a cooperação como o espírito que move os empreendimentos locais e a rede que vai se construindo entre esses; b) participação dos “associados/trabalhadores” nas discussões e decisões, subvertendo a relação vertical que domina nas empresas capitalistas ou socialistas; c) o objetivo imediato de melhorar as condições de vida dos participantes e da sua região.

O grande valor desses empreendimentos econômicos é que neles se realizam concretamente alguns dos aspectos fundamentais da relação economia e vida na perspectiva da fé: a) melhoria nas condições materiais da vida; b) a afirmação do ser humano como um ser de dignidade, com auto-estima e reconhecimento mútuo. Projetos econômicos e sociais que atendem somente um desses dois aspectos são, na perspectiva da fé cristã e também na perspectiva humanista, falhos. É por isso que não basta uma comunidade (de fé ou de outro tipo) ajudar os pobres se não resgata ou promove a auto-estima e o senso de dignidade dessas pessoas marginalizadas ou diminuídas pela sociedade; assim como não se pode resgatar a dignidade dessas pessoas sem preocupar com as condições materiais da sua vida. Como disse Jesus, “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus” (Lc 4,4), isto é, de pão e da Palavra que resgata a dignidade de todas as pessoas. Resgate da dignidade que só pode acontecer na medida em que se luta pelo seu pão e pelo do próximo, dos mais necessitados.

O grande número desses empreendimentos e das suas conquistas, no meio de dificuldades e desafios, traz para nós uma nova questão. Na medida em que essas experiências são realmente gratificantes e torna a vida de todos/as os/as participantes melhores, muitos propõem que a economia solidária deva ser o projeto de uma nova sociedade, substituindo o socialismo como uma alternativa ao capitalismo. Isto é, projetam no nível macrossocial, global, a experiência micro ou ainda marginal na economia. É como se não houvesse diferenças qualitativas entre o âmbito micro da economia e sociedade e o do macro.

Outros, por não concordar que se possa construir uma economia solidária em nível nacional ou global, não reconhecem os valores desses trabalhos e empreendimentos. No fundo, os dois grupos baseiam-se no mesmo princípio. O primeiro diz: como funciona bem no nível macro, também deve ser o modelo para o macro. O segundo diz, como não é possível funcionar no nível macro, não tem valor nem mesmo para o âmbito local e regional. Os dois grupos continuam buscando uma única solução para âmbitos e problemas diferentes.

Eu penso que devemos sair desta polarização e reconhecer que a economia solidária é uma proposta importante, necessária e muito boa para vida de muitas pessoas, mesmo que não possa ser aplicada – pelo menos sem grandes adaptações que a modificariam- à economia em escala global. É fundamental conhecer os limites e os valores de projetos e trabalhos concretos para não cairmos no erro de nos cobrarmos ou cobrar de outros objetivos que estão além das possibilidades. Quem se cobra ou cobra de outros a realização de objetivos não-factíveis acaba só semeando frustração e paralisia.

Na perspectiva da fé cristã, um trabalho não vale porque cria uma solução definitiva para os problemas do mundo, mas porque é expressão do amor solidário e resgata a vida das pessoas que viviam na morte. Essa passagem da morte para a vida pode ser chamada de reinado de Deus que acontece no meio de nós. Não importa quão pequeno é o resultado em termos de estatística, o que conta é o que significou e significa na vida das pessoas. Mas, é claro também que a compaixão (a dor que sinto pela dor do/a outro/a) nos leva a queremos ampliar ao máximo os resultados e os alcances de trabalhos como o da economia solidária.