Fome generalizada na Somália. Um problema político

“Este é apenas o início da crise, e, antes que a situação melhore, é provável que ela fique pior”, declara Frido Pflueger à IHU On-Line, ao mencionar o estado de fome que atinge a Somália e o Chifre da África. Segundo ele, a Etiópia e o Quênia têm abrigado centenas de milhares de refugiados somalis, mas os países estão “sobrecarregados e precisam de auxílio para lidar com sua própria população afetada pela estiagem”.

Apesar da fome generalizada causada pela seca, Pflueger conta que a situação do país tem se agravado porque, desde que o governo de Said Barre foi derrubado em 1991, “a Somália não tem um governo efetivo”. “Países com um governo estável e em funcionamento têm a capacidade e as estruturas para enfrentar uma seca ou compensar a alta no preço dos alimentos com medidas apropriadas. A Somália, por estar em guerra há duas décadas, não tem essa capacidade. Esta é a razão pela qual uma seca pode virar uma situação de fome e atingir a escala da crise atual”, explica.

Diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados, Frido Pflueger informa que “1.300 somalis chegam diariamente aos campos de Dadaab, no Quênia”, o qual abriga atualmente 500 mil refugiados. Em Dolo Ado existem quatro campos, que abrigam cerca de 114 mil refugiados. “Muitos refugiados caminham durante dias ou semanas até alcançarem os campos, muitos morrem a caminho e a maioria dos que chegam recebe sua primeira refeição substancial em semanas depois de chegarem”, relata.

Frido Pflueger, jesuíta alemão, é bacharel em Filosofia e mestre em Teologia, Matemática e Física. Desde 2008 é diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados – SJR para a África Oriental.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que diferencia a situação de pobreza e miséria da Somália da de outros países?

Frido Pflueger – A principal diferença é que a Somália não tem um governo efetivo desde que Said Barre foi derrubado em 1991. Países com um governo estável e em funcionamento têm a capacidade e as estruturas para enfrentar uma seca ou compensar a alta no preço dos alimentos com medidas apropriadas. A Somália, por estar em guerra há duas décadas, não tem essa capacidade. Esta é a razão pela qual uma seca pode virar uma situação de fome e atingir a escala da crise atual.

IHU On-Line – Como o senhor descreve a situação econômica, social e política do Chifre da África, especialmente da Somália?

Frido Pflueger – A situação econômica, social e política no Chifre da África é muito diversificada e varia de país para país. Na Etiópia, por exemplo, a situação é completamente diferente da Somália ou do Djibouti. Aprofundar-se na situação de cada país tomaria muito tempo. Mas apenas para dar um exemplo, a Etiópia é o país que tem a segunda maior população da África (80 milhões de habitantes), cuja maioria é cristã ortodoxa, e é muito pobre. Lá existe muita agricultura em pequena escala, mas seu poder econômico não é tão grande quanto o do Quênia, por exemplo. O governo é repressivo, mas ao mesmo tempo exerce uma função importante em ajudar os países vizinhos a encontrar soluções pacíficas para conflitos contínuos.

Já a população da Somália é muçulmana, está organizada em clãs, e não em grupos étnicos (ou tribos); sua capacidade econômica está perto de zero depois de uma década de conflito, enquanto a pirataria se alastra ao longo de sua costa. Um quarto da população da Somália fugiu do país e vive no exílio, enquanto que 1,5 milhão de pessoas estão deslocadas dentro da própria Somália.

IHU On-Line – Quais são as causas da falta de alimentos na Somália?

Frido Pflueger – As causas da crise de seca e fome na Somália são principalmente três. Primeiro, uma mudança nos padrões climáticos que ocorreu em toda a região. Segundo, uma disparada nos preços dos alimentos na região inteira. E, terceiro, o conflito na própria Somália, que não tem um governo efetivo desde a derrubada de Siad Barre do poder em 1991.

IHU On-Line – Segundo notícias da imprensa, a zona sul do país está controlada pelas milícias do Al-Shabab. Que milícias são essas? Qual sua origem?

Frido Pflueger – As milícias extremistas do Al-Shahab estão combatendo o governo federal transitório apoiado pela comunidade internacional, mas este governo só controla uma fração do território. É muito difícil, se não impossível, promover políticas de modo geral num país dilacerado por guerra e conflito durante 20 anos, e o progresso só acontece em escala muito pequena.

Para dizer o mínimo, as milícias do Al-Shahab são um grupo radical extremista que instituiu a lei da charia na Somália. Elas foram repetidamente associadas à Al Qaeda, e países como os Estados Unidos as tacharam de grupo terrorista.

IHU On-Line – Após declarar a independência, o Sudão do Sul também enfrenta situações de fome extrema?

Frido Pflueger – Não. Atualmente o Sudão do Sul não está enfrentando uma situação de seca ou fome. Mas, como toda a região, ele é afetado pelos altos preços dos alimentos. O Sudão do Sul eêm grandes extensões de terras agricultáveis, mas a agricultura não está desenvolvida ainda, em parte porque grandes áreas de terra não tiveram suas minas removidas ainda, e também porque as pessoas não dispõem da capacidade e das ferramentas para iniciar uma agricultura em grande escala e os investidores estão apenas começando a entrar.

IHU On-Line – Como funcionam os campos de refugiados no Quênia e na Etiópia? Quantos somalis estão refugiados nesses locais?

Frido Pflueger – A situação nesses campos é de grande carência. Cerca de 1.300 somalis chegam diariamente aos campos de Dadaab, no Quênia, que agora abrigam perto de 500 mil refugiados. Na Etiópia, o número de novas pessoas que chegam aos campos em Dolo Ado diminuiu de 1.700 por dia em junho para 270, porque ajuda em forma de alimentos está sendo dada agora dentro da Somália. Ainda assim, o campo aumenta muito rapidamente, 80% dos refugiados são crianças com menos de 18 anos de idade e a taxa de desnutrição aguda global é de 30%. Em Dolo Aldo foi aberto um novo campo nesta semana, e 15 mil refugiados que estavam encalhados no centro de inscrições foram transferidos para esse novo local. Atualmente os quatro campos existentes em Dolo abrigam cerca de 114 mil refugiados.

Em Dadaab, foi aberta uma extensão do campo de Ifo, e milhares de refugiados que estavam acampados na periferia do campo foram transferidos para ele. Muitos refugiados caminham durante dias ou semanas até alcançarem os campos, muitos morrem a caminho e a maioria dos que chegam recebe sua primeira refeição substancial em semanas depois de chegarem. Os funcionários da ajuda humanitária trabalham dia e noite para suprir as necessidades urgentes dos refugiados, mas é praticamente impossível atender todos.

IHU On-Line – Como os serviços psicossociais e educacionais têm ajudado a dar estabilidade aos refugiados?

Frido Pflueger – O Serviço Jesuíta aos Refugiados tem oferecido apoio psicossocial em forma de aconselhamento e métodos alternativos de cura (massagem, reflexologia etc.) a refugiados no campo de Kakuma, no noroeste do Quênia, por mais de 15 anos. A organização forma aconselhadores e terapeutas alternativos dentre os refugiados que, por sua vez, podem servir e apoiar os membros de suas próprias comunidades. Ao mesmo tempo, eles ajudam a identificar crianças portadoras de deficiências mentais ou físicas às quais o Serviço Jesuíta aos Refugiados presta então assistência através de três creches, ao mesmo tempo em que conscientiza as pessoas em relação às necessidades especiais dessas crianças. O programa tem provado ser muito bem-sucedido.

Quase todos os refugiados ficam traumatizados com suas experiências, e a maioria se encontra numa situação de exílio prolongado (que já dura mais de 17 anos agora). Tudo isso faz com que seja extremamente difícil para eles enfrentarem a vida. Os métodos que o Serviço oferece ajuda a lidar com seus traumas passados e com os desafios que eles enfrentam no campo de refugiados. Oferece-lhes um futuro e os ajuda a readquirir esperança de um mundo melhor.

Proporcionar educação é a atividade central do Serviço Jesuíta aos Refugiados. Nossa experiência mostra que especialmente os refugiados jovens recuperam a esperança através da educação. Ela os ajuda a desenvolver seu potencial pleno, e, com as aptidões que adquirem, eles podem contribuir para reconstruir seus países depois de estes alcançarem a paz. Ajuda-os a empregar seu tempo nos campos de refugiados de uma forma significativa e positiva. A educação é uma resposta eficiente e necessária a situações em que há refugiados.

IHU On-Line – Qual sua expectativa em relação ao combate à fome na Somália?

Frido Pflueger – Este é apenas o início da crise, e, antes que a situação melhore, é provável que ela fique pior. Constitui um sinal positivo o fato de a comunidade internacional estar reagindo, mostrando solidariedade e tentando encontrar formas de minorar a situação. Entretanto, todas as declarações e avaliações não farão sentido se não forem traduzidas em ações concretas no campo. Por enquanto, é preciso empreender ações imediatas para garantir que as pessoas que estão sofrendo tenham acesso a comida a partir de onde estão. A Etiópia e o Quênia têm sido muito generosos ao abrigar centenas de milhares de refugiados somalis, mas estão claramente sobrecarregados e precisam de auxílio para lidar com sua própria população afetada pela estiagem. Embora a crise da Somália tenha sido desencadeada pela seca e pela elevação dos preços dos alimentos, um estado que funcionasse estaria em melhores condições de reagir a essas flutuações. O que faz disso uma crise é o conflito.

Embora reagir às mais urgentes necessidades seja de extrema importância, também precisamos começar a planejar respostas de médio e longo prazo. O mundo não pode continuar a só começar a agir depois que as pessoas já estão passando fome. Os governos dos países afetados, bem como os países que prestam assistência, têm de promover a paz na Somália, assim como a segurança alimentar e o desenvolvimento agrícola em toda a região. Secas e períodos de fome têm ocorrido regularmente nessa região.

Se continuarmos apenas reagindo a emergências, trazendo socorro em forma de comida, estaremos na mesma situação daqui a três, cinco ou sete anos. Os esforços para construir a paz na Somália têm de ser intensificados. Nesse ínterim, o Serviço Jesuíta aos Refugiados se concentra em medidas de médio prazo, como, por exemplo, serviços específicos direcionados para as necessidades psicológicas ou educacionais dos refugiados que provavelmente não terão condições de voltar para casa no futuro próximo.