O homem médio

DAVID OLIVEIRA DE SOUZA*

Este ano, foram libertadas as pessoas acusadas de extorquir o padre Júlio Lancellotti. A sentença, proferida pelo juiz Julio Caio Farto Sales, surpreendeu pela inconsistência dos argumentos. O magistrado ignora fatos relevantes, como a conclusão do inquérito policial que reconheceu a ocorrência de extorsão e o pedido de condenação dos réus pelo Ministério Público de São Paulo. O que mais assusta, no entanto, é a falta de análise do contexto em que os fatos se deram e os acusados agiram, pois permite interpretações distorcidas, como a que faz o juiz na sentença ao concluir que não é compreensível que um “homem médio” – no caso o padre Júlio – tenha aceitado uma extorsão por tanto tempo. É curioso o fato de que para o referido juiz, um homem médio jamais aceitaria uma extorsão por longo período, porém de bom grado abriria mão das economias de toda uma vida por razões frívolas.

Não se sabe o que o meritíssimo definiu com o termo “homem médio”, mas tudo indica que referiu-se à média dos homens da sociedade, faltando especificar sob que aspecto trata-se a vítima de um “homem médio”. Econômico, social, moral, educacional, religioso? Poderemos ter um homem médio na educação, mas abaixo da média na dimensão econômica? Ou outro homem médio no porte físico, mas acima da média na dimensão moral? Qualquer que seja a resposta tem-se que todo “homem médio” pode ser vítima de violência e, uma vez o sendo, pode reagir de formas diversas, principalmente se a violência em questão for psicológica.

Segundo o Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, a violência psicológica consiste em agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a pessoa, restringir sua liberdade ou ainda isolá-la do convívio social. Tem efeito sobre a auto-estima e a autoconfiança. É uma modalidade de violência pouco reconhecida e notificada. No entanto, está na base de problemas de saúde como transtornos de ansiedade e depressão. O processo mostra que padre Júlio foi vítima de violência psicológica contínua. O mesmo tipo de violência sofrida pelos moradores do imóvel irregularmente ocupado na zona leste de São Paulo para onde os réus foram pouco depois de sua libertação, exigindo de forma violenta, segundo relatos das vítimas, o pagamento dos aluguéis que recebiam ilegalmente antes de serem presos.

É fato conhecido que a violência psicológica pode perpetuar-se por longos períodos, principalmente se houver vínculo familiar entre o algoz e sua vítima. São comuns abusos psicológicos de pais contra filhos, de filhos contra pais ou entre empregadores e empregados. O vínculo deixa muitas vezes a vítima aprisionada num conflito mental em que espera, sem sucesso, a mudança de atitude de seu agressor, o qual, por sua vez, alimenta essa esperança com interregnos menos agressivos, até voltar a ser violento. No caso específico de Júlio Lancellotti, somam-se outras dimensões à cena, que justificam o fato de a denúncia formal ter ocorrido apenas três anos após o início da extorsão (a informal fora feita dois anos antes, ao governador, ao secretário-adjunto de Segurança e ao comandante da PM): a dimensão religiosa, que fortalecia a crença na possibilidade de mudança de atitude do agressor; a dimensão histórica, do cidadão que dedicou anos de sua vida à defesa de uma atitude sociedade menos punitiva e mais cuidadora da sociedade diante dos jovens infratores, fazendo com que a condenação do réu representasse simbolicamente a derrota de sua causa; a dimensão biológica, que fez com que reagisse de forma depressiva às ameaças perpetradas contra sua vida. Nenhuma dessas dimensões pode ser ignorada e,se acrescidas dos fatos evidenciados no processo, não deixam dúvidas de que Júlio Lancellotti foi vítima de extorsão continuada.

Um elemento final e muito destacado é o fato de padre Júlio não ter até o momento se pronunciado publicamente em defesa própria, sendo que tantas vezes o fez em favor dos excluídos. O silêncio do padre reproduz a atitude histórica de muitos religiosos em momentos de dificuldade e remonta até o referencial maior dos cristãos, a própria figura de Jesus, a quem Pilatos perguntou insistentemente: “Nada respondes? Vê quantas coisas testificam contra ti?”. E Jesus nada respondeu.

DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 32, é médico pessoal do padre Júlio Lancellotti, professor de saúde coletiva da Universidade Federal de Sergipe e trabalha para a Organização Médicos Sem Fronteiras. É especialista em medicina de família e comunidade pela UERJ, especialista em clínica médica pela UFRJ e mestre em relações internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris.