Páscoa e crise

Dom Demétrio Valentini

À primeira vista, parece que páscoa não tem nada a ver com crise. Na verdade, a páscoa surgiu da mais antiga, e da mais natural das crises, a crise do ciclo anual da vida em nosso planeta.

Faz parte da dinâmica da vida a luta constante pela sobrevivência. O momento mais preocupante é quando a vida aparentemente perde sua força, no declínio do inverno, e ameaça se extinguir.

É então que surge o prodígio maior. De dentro da morte, as forças vitais se reaglutinam, e todo o universo parece conspirar em favor da vida, que retoma vigor e exuberância na manifestação da primavera.

Foi para celebrar este triunfo natural da vida sobre as forças da morte que surgiu a primitiva páscoa. Antes de ser apropriada pelo povo de Israel como festa histórica de sua libertação do Egito, a páscoa já era celebrada pelos povos que experimentavam com mais intensidade o contraste entre os rigores do inverno e os encantos da primavera.

A páscoa começou sendo a festa que cantava a vitória da vida sobre a morte em nosso planeta.

Neste contexto, o declínio da vida, por seu esgotamento natural e pelas condições adversas do inverno, era a oportunidade para o reencontro das energias que lhe davam novo impulso. A crise era oportunidade de renovação. Fazia parte do processo vital, e era integrada na sua dinâmica normal.

Os processos naturais servem de parábola e de inspiração para a história humana. Nesta, a realidade toma as variadas feições dos fatos concretos. Mas a sua trajetória traz também as marcas da luta pela sobrevivência.

Num primeiro estágio, a vitória de uns parece implicar necessariamente na derrota de outros. A própria narrativa da libertação de Israel implica a eufórica descrição da morte dos egípcios aos borbotões.

Foi preciso o testemunho de Cristo, constituído em nova e definitiva páscoa, para entendermos que o segredo da vida humana está em sua doação. Dando sua vida por amor, Cristo vence a morte, com a vitória de sua ressurreição.

Esta simbologia da fé não nos exime de enfrentar o desafio de perceber a gravidade da crise atual. Ela não se enquadra no ritmo normal dos ciclos da vida. É fora de série. Ela não se cura com uma páscoa. Ela aponta para desvios mais graves, cometidos pela civilização atual, que ameaçam a própria vida do planeta. A crise ecológica se constitui na advertência mais eloqüente, capaz ainda de sensibilizar as consciências.

Quando avisaram Jesus que seu amigo Lázaro estava enfermo, não foi logo visitá-lo. Esperou que morresse, para depois ressuscitá-lo. “Esta doença é para que se manifestem os desígnios de Deus”.

Agora também. Não adianta ter pressa diante desta crise, que pede muito mais do que mudanças superficiais. Primeiro é preciso deixar morrer muitas ilusões, produzidas por um modelo de civilização marcado pela depredação da natureza, pelo acúmulo e desperdício, e pela desigualdade produtora de miséria e de violência.

Esta crise precisa nos ensinar os caminhos do respeito pela natureza, da justiça na organização social, e da fraternidade nos relacionamentos humanos.

Desta vez, a páscoa nos remete à sexta-feira santa. Antes de terminar a crise, há muitos equívocos que ainda precisam ser exorcizados.