Páscoa: o arrebatamento da vida

Domingos Zamagna *

Estamos todos contagiados pelo clima da Páscoa. Porém, mesmo num país de maioria de judeo-cristãos, como é o nosso, a Páscoa para muita gente ficou relegada a um prolongado feriado após o carnaval, responsável por alto consumo de chocolates.

Páscoa, como várias outras festas importantes, é uma superposição de diversas “camadas”. Originalmente era uma festa da primavera no hemisfério norte que dizia respeito praticamente a todo mundo: o inverno foi embora, os rios e lagos se aquecem e fica gostoso passear ao ar livre. Em seguida, temos a camada judaica, que celebra a libertação do Egito; depois veio a camada cristã, que se refere à ressurreição de Jesus Cristo.

Nada impede que comemoremos as três camadas: quem não gosta de um agradável passeio de outono? Quem não reconhece a importância histórica, simbólica, paradigmática, religiosa de um fato como o Êxodo? Quem não reconheceria a relevância ética da mensagem profética e sapiencial do humilde rabi da Galileia?

Uma vez Freud segredou que, de todas as artes, a música era a de que menos gostava: “porque ela me arrebata, e eu não sei por que”. Assim também desde o início da era civil homens e mulheres, muito além da grandiosidade antropológica do carpinteiro Jesus de Nazaré, sentiram-se arrebatados pela sua pessoa e pela sua missão, que outra não era senão aprofundar, levar às ultimidades, a dimensão da libertação do ser humano.

No contexto de uma Lei mosaica que ficou desfigurada pela prática saduceia e farisaica; de uma Lei grega que segregava os humilhados e ofendidos; de uma Lei romana que assegurava a paz para os fortes e os amigos dos fortes, consagrando e institucionalizando a violência, eis que surge “o filho de José e Maria”. Embora ele as tivesse, despiu-se das prerrogativas da divindade para ser reduzido a um corpo macerado, flagelado, exangue pela aplicação – instigada pelas elites do povo, mas enfim ordenada e executada pela autoridade romana – do pior dos castigos, a crucificação. Vários terão dito: Que fracasso!

Tudo teria sido deixado por aí mesmo, mais um falso messias  desmascarado e executado, tudo seria absorvido pela banalidade da história, não fora uma energia tão nova e intensa capaz de ultrapassar a finitude humana. Só conhecemos o seu nome porque o próprio Jesus no-la revelou: era uma “força de salvação” (Lc 1, 69) irrompida do seio de seu próprio Pai. No idioma de Jesus, o galileo-aramaico, nem sequer havia nome para designar essa força, quando muito chamavam-na Adonai (“meu Senhor”); os gregos ousaram uma tradução, chamando-a “Theós”, de onde veio o nosso latim-português “Deus”.

A complexidade da Páscoa nos tem feito refugiar-nos no chocolate. Preferimos o conforto do Natal. Afinal, todos os seres humanos fizeram e fazem a experiência do nascimento. Mas quem terá feito a experiência da ressurreição? Será isso possível? Ou, pelo menos, desejável? Quem poderia satisfazer o insopitável desejo de imortalidade conhecido por cada ser humano?

A Páscoa é a festa em que proclamamos que Deus, assim como fez a Jesus, é capaz de restituir o vigor a quem perdeu o viço; destruir a maldade pela restauração de um coração de bondade; a paz e a alegria da graça a quem estiver nas sombras da morte do pecado; ou, como ensinou Agostinho, o velho Bispo de Hipona, no século V: “desceu até nós a nossa própria vida, suportou a nossa morte e matou-a com a abundância da sua vida”.

* Jornalista e professor de Filosofia em São Paulo