Pe. José Comblin, Pregador da Palavra de Deus

Domingos Zamagna
Jornalista e professor de Filosofia em São Paulo

Acabo de participar da Missa de 7º dia em sufrágio do Pe. José Comblin. Presidida por Dom Angélico Sândalo, emérito de Blumenau, ao lado de outros bispos eméritos, foi realizada no Convento dos Dominicanos, em cuja Escola de Teologia (hoje intitulada Instituto Bartolomeu de Las Casas, afiliado à Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino – Angelicum, em Roma) o Pe. Comblin lecionou durante mais de uma década.

Ali fui aluno deste extraordinário mestre e, como centenas e milhares de pessoas, pude aprender com ele as maravilhas da fé cristã. Nossa amizade já durava 46 anos, quando recebi, da querida amiga comum Ana Flora Anderson, a notícia de seu falecimento.

Falando dele para alunos, dentre os quais muitos seminaristas, a maior parte nem sequer sabe quem foi este teólogo. Alguns se recordavam que sobre ele pairava uma proibição de dar conferências em instituições católicas, inclusive na PUC-SP. Eu me recordo que quando a PUC-SP foi invadida em 1977 pelas tropas do Cel. Erasmo Dias (governo Paulo Egydio Martins) para violentamente reprimir estudantes que faziam assembleia, o cardeal Paulo Evaristo Arns (grão-chanceler da universidade) retornou às pressas da Europa e declarou, logo que desceu do avião: “A universidade existe e sempre existiu para debater todos os problemas, sem exceção. É sinal de pouca civilização proibir professores e alunos de debater os seus problemas”. Não temos registro de uma só voz que tenha protestado contra a injustiça feita ao Pe. Comblin, mas temos certeza que várias vozes se ergueriam se a interdição fosse dirigida a algum político corrupto de partido da carcomida coligação de sustentação do governo.

Santo Tomás de Aquino, São Boaventura e tantos outros doutores em Teologia foram debatedores, jamais fugiam das “quaestiones disputatae”. Lecionar, debater, pregar (legere, disputare, praedicare) eram as tarefas próprias dos mestres em Teologia. Por que várias autoridades eclesiásticas fingem ignorar que dezenas de documentos oficiais da Igreja incentivam os teólogos a seguir o exemplo de Santo Tomás que, fidelíssimo à doutrina da Igreja, jamais ensinou sem antes se informar e expor as razões dos objetores? Queremos formar seminaristas e leigos para serem meros repetidores de surradas manualísticas? Para quem não conhece, recomendo a leitura de J. Comblin. A atualidade de Santo Tomás de Aquino. REB 135 (1974), 515-523.

Pe. Comblin fez da investigação rigorosa um compromisso da sua atividade professoral. Suas aulas e conferências jamais provocaram indiferença, pelo contrário, despertavam o senso crítico e nos incomodavam profundamente. Costumava dizer: “É diante do pobre que a nossa teologia tropeça”. Uma reverberação de Basílio de Cesareia, de João Crisóstomo, de GregórioMagno… de Dom Larrain, Dom Proaño, Dom Romero, Dom Helder, Dom Luciano… e de tantos da Patrística latino-americana.

No ano de 1972, após participarmos do primeiro congresso de Teologia da Libertação em El Escorial, pude acompanhar Pe. Comblin numa longa viagem pela Espanha. Se às vezes parecia-me viajar em companhia de Fliche e Martin, tal a sua cultura e erudição, percebi que eu estava mesmo era ao lado de um discípulo de Jesus, seduzido pela aventura de Deus, apaixonado pela Igreja e pela evangelização, tomado de amor pelos pobres e pecadores, amigo dos santos e dos místicos, que passou horas em contemplação na capela do convento de Calaruega, terra de São Domingos de Gusmão; num misterioso silêncio, ajoelhado, com o Terço na mão, no mosteiro da Encarnação, certamente na intimidade da Virgem Maria e de Teresa d’Ávila; na catedral de Sevilha, quando os tradicionais cônegos, capitaneados por Gonzalez-Ruiz, retardaram a recitação das horas canônicas para ouvi-lo numa improvisada e inesquecível homilia sobre a Igreja na América Latina; no Instituto Fe y Secularidad, de Madri, o Pe. Castilho SJ, após uma palestra de Comblin sem anotação alguma, admirava-se de seu minucioso conhecimento da história e da modernidade da espiritualidade de Santo Inácio de Loyola. Esses são pálidos exemplos de como nosso teólogo se desdobrava para falar de Deo aut cum Deo, de modo que sobre ele se pode dizer o que Guilherme de Tocco escreveu sobre São Tomás: fora o sono e a alimentação, “o resto do tempo era empregado na oração, no ensino, na pregação, na meditação ou em escrever e ditar questões”.

Nas próximas semanas, meses e anos ouviremos muitos relatos sobre as facetas deste apaixonado Pregador da Palavra de Deus: no campo e na cidade, nas montanhas e nas planícies, entre as monjas e os operários, nas favelas e nas faculdades, entre os clérigos e os índios, diante do soberanos belgas e dos sertanejos nordestinos. Seria bom que os que conviveram com ele mais de perto colocassem tudo por escrito, para que não se perca a memória dessa relevante, porém – nudum Christum nudus sequi – humilde e não obstante alegre página da história da nossa Igreja.

Às vésperas da Páscoa, a imagem do Pe. Comblin se apaga, para que sobressaia a realidade da pessoa e missão de nosso Salvador Jesus Cristo que ele, com singela sabedoria e de diversas maneiras, dócil à graça divina, quis nos transmitir pela pregação e pelo testemunho.