Refletindo Dom Hélder Câmara

Geraldo Frencken

Recife, 28 de agosto de 1999, a partir das 17 horas: uma multidão acompanha o carro dos bombeiros desde a Igreja das Fronteiras, cuja sacristia tinha servido durante quase trinta e dois anos como morada de Dom Helder Camara. Em cima do carro o caixão, e nele o corpo do Dom. Um percurso de uns sete, oito quilômetros. O povo cantando, rezando e dando adeus ao seu eterno pastor. O caixão desaparece debaixo das flores de todas as formas e todas as cores, “as rosas da minha vida”, como Dom Helder a elas se referia. Ao chegar à catedral de Olinda e Recife, em Olinda, a multidão aplaude ininterruptamente e, com horas de atraso, a Missa de corpo presente começa a ser celebrada. De repente, em meio às solenidades oficiais, uma pessoa se solta do meio da multidão e coloca a bandeira do MST sobre o caixão do Dom: um profundo silêncio, alguns olhares perturbados, o Núncio Apostólico, presidindo a cerimônia, pergunta a um dos padres concelebrantes: “Que bandeira é esta?!” ….. Mas ninguém ousa remover este símbolo por mais justiça e paz na terra. Mais tarde, ao sepultar o corpo cansado do Dom, a bandeira permanece onde fora colocada, e pouco a pouco integrar-se-á à terra junto com aquele que dedicou a sua vida à defesa daqueles que não “possuem um palmo de terra para sobreviver”, como rezava em sua oração à Mariama na Missa dos Quilombos-.

Dom Helder vivia uma espiritualidade de entrega total aos desígnios de Deus: “Dá liberdade ao Pai, para que Ele mesmo conduza a trama dos teus dias.”

Que Deus? O Deus dos pequenos, dos pobres, dos maltrapilhos, dos sem terra, sem teto, sem roupa, sem participação no assim chamado progresso do mundo. É o Deus dos povos da América Latina, chamada por Dom Helder de “a vila cristã do mundo pobre”, no qual o povo vive na “miséria que engloba sub-habitação, sub-trabalho, sub-diversão, sub-saúde, sub-vida, opressão: as formas de violência que geram todas as outras”. Dom Helder via-se presente neste mundo. Era bispo da Igreja, mas era bispo para o mundo, tornando-se “sal da terra e luz do mundo”.

Ele, juntamente com o nosso querido e saudoso Dom Aloísio Lorscheider e tantos outros, era um dos arquitetos de uma Igreja presente no mundo a partir e no meio dos pobres. Teve participação nos grandes momentos da Igreja no século XX, colocando sempre como tema central o mundo dos empobrecidos. Na vida destes, ele não queria ser somente mais um que praticava a caridade, mas levava os próprios pobres a entenderem as causas da pobreza, da miséria, do descaso, apontando para as estruturas sociais, os mecanismos econômicos e a falta de compromissos políticos. Ele dizia: “Se eu dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Se eu pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista”.

Nada o Dom fazia sem consultar seu maior amigo: o próprio Cristo, com quem manteve longas conversas na madrugada de todos os dias, diante do altar de quem dançava, inspirado por quem escrevia seus discursos, suas poesias, suas cartas e no altar de quem derramava lágrimas todas as vezes quando celebrava o amor de Cristo vivido na celebração eucarística, isto é na partilha do pão, gesto este que continuará “mistério”, enquanto a humanidade toda não aprenda a partilhar seus dons espirituais e materiais.

Encontramos deste modo o profeta Helder. Profeta é aquele que, na calada da noite, escuta seu Deus a fim de saber a quem se dirigir e o que falar, pois o profeta é aquele que empresta sua língua a Deus a fim de que Este fale.

O profeta é livre. Dom Helder, mesmo vivendo, como todos nós, dentro das rígidas estruturas da igreja e da sociedade, as mesmas para ele não pareciam existir, embora, como testemunha um amigo confidente dele, “ele tenha sofrido um bocado por causa de um determinado funcionamento delas.” Um dia, Dom Jacques Gaillot, bispo de Partênia (Norte da África), amigo de Dom Helder, dizia: “Quando a gente tem medo não é livre, e quando é livre mete medo!” O Dom era livre, e aqueles que promoveram as injustiças e a opressão em nosso país, seja durante a ditadura como anterior e posterior a ela, exatamente por causa desta liberdade, o temiam, enquanto ele, Helder, não tinha o que temer! É nesta liberdade vivida, que nascera a denúncia nas palavras do Dom: denúncias contra todas as formas de sofrimento humano. E é na denúncia que o profeta faz germinar o anúncio, o anúncio da dignidade humana.

O profeta testemunha! Dom Helder optou livremente por uma vida austera, simples, junto dos seus irmãos, os pobres, seguindo os exemplos de dois gigantes do amor aos pobres na história: São Francisco de Assis e São Vicente de Paulo. O testemunho do Dom da Paz brotava justamente do perfeito equilíbrio, que havia nele, entre contemplação e ação.

Hoje nós temos saudade de profetas como Dom Helder, Dom Aloísio, as vozes e os testemunhos do passado recente. Mas não é só saudade que sentimos. Somos convencidos também de que o mundo sempre necessita de profetas. Nós deles precisamos!

Que a sociedade e, de forma especial, as igrejas permitam que haja sempre homens e mulheres que, livres, desimpedidos e com os pés no chão, possam testemunhar o dom da “vida em abundância”.

Geraldo Frencken, nascido na Holanda, no Brasil desde 1973, é teólogo e ex-professor do Instituto de Ciências da Religião (ICRE) na Prainha