Rostos sem pátria: a rua como lugar teológico

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

1. Rua é fronteira

A rua é uma fronteira. Fronteira entre os de dentro e os de fora, entre os que têm e os que não têm casa, entre os incluídos e os excluídos, entre empregados e desempregados, e assim por diante. Hoje, em to o país, centenas de milhares de pessoas habitam esse espaço indefinido da fronteira. A palavra fronteira, aqui, é entendida não somente em termos geográficos, mas sobretudo em termos simbólicos, culturais e até psíquicos. Uma terra de ninguém, espécie de não lugar, onde moram os “não cidadãos”, uma vez que lhes são negados os direitos básicos à vida e muitas vezes sequer dispõem de documentos de identificação. Sentem-se estrangeiros e estranhos em sua própria pátria. Por isso mesmo, vêem sua identidade ameaçada, questionada, fragmentada. Inclusive sua fé e esperança não raro se vêem abaladas, devido aos golpes devastadores da vida.

A partir desse não lugar, a pessoa é levada a interrogar a si mesmo e a Deus, bem como a interrogar o próprio destino. As certezas e referências se desfazem, como se as estrelas se apagassem no céu e os marcos desaparecessem da estrada. Dúvidas, medos e insegurança passam a habitar o coração e a alma. O perigo da solidão, da anomia e do desespero ronda a próxima esquina. Na luta cada vez mais difícil pela sobrevivência, dores e esperanças, lutas e sonhos se mesclam, se confundem e se alternam.

Entretanto, esse mesmo espaço ambíguo da fronteira – esse não lugar – é cheio de novas potencialidades. Se, por um lado, escancara o sofrimento dos não cidadãos como vítimas da ordem vigente, por outro, os apontam como protagonistas potenciais de um novo tempo. De fato, a experiência de passar por esse não lugar abre perspectivas para sonhar com novos horizontes. Ou seja, a rua como não lugar torna-se o lugar privilegiado, para forjar um novo lugar. Um lugar ideal para criar as raízes de uma nova noção de cidadania, um terreno fértil para cultivar o conceito de cidadania universal e sem fronteiras. A partir da experiência dolorosa de estar fora da casa e da sociedade, engendra-se o anseio por uma casa universal, desvinculada das categorias estreitas de Estado-nação, língua, raça, etnia ou inclusão no mercado de trabalho.

Numa palavra, o povo de rua habita a fronteira de dois mundos ou duas civilizações: de um lado, uma ordem mundial simultaneamente concentradora e excludente, de outro, o sonho de um outro mundo possível. O próprio ato viver na rua é, ao mesmo tempo, denúncia e anúncio, num tempo marcado por profundas assimetrias sócio-econômicas. Denúncia da falta de condições reais para viver com dignidade e anúncio de que mudanças substanciais se fazem necessárias e urgentes.

Quem nasce em berço de ouro dificilmente quer mudanças. A segurança material tende a tolher a faculdade de sonhar. “Onde está teu tesouro, aí está teu coração”! Somente quem está à margem da vida e da história será capaz de romper fronteiras e apontar alternativas. Os sonhos expressam as carências que sofremos acordados, e suas realizações são obra de quem mais as sofre. Daí que, em geral, os pobres e os jovens se encontrem mais abertos às mudanças da história.

Os moradores de rua são portadores dessa nova utopia mundial. A caminho, eles nos chamam também a caminhar. Na construção de um novo mundo de justiça e solidariedade, é preciso desinstalar-se. Os pobres tornam-se, a um só tempo, um sinal vivo das contradições da globalização neoliberal em que vivemos e porta-vozes de uma nova ordem mundial. O terreno ambíguo da fronteira gera a atitude ambígua da experiência de não se sentir um cidadão de fato. Nesse não lugar, o povo de rua se depara frente a uma encruzilhada: entregar-se à solidão e ao desespero ou abrir novos caminhos.

 

2. A fronteira e o Reino de Deus

O não lugar, terreno indefinido e escorregadio pela sua precariedade, converte-se assim num solo fecundo para uma nova reflexão sobre a própria existência, sobre a fé em Deus e sobre a prática solidária para com os irmãos e irmãs. A fragilidade do presente e a incerteza quanto ao futuro traduz toda a ambigüidade da própria natureza humana. Quando o chão foge debaixo dos pés, é preciso caminhar em busca de um novo terreno, firme e sólido. Daí que, de um ponto de vista teológico, o não lugar se converte em um lugar ideal para deitar os alicerces do Reino de Deus.

Convém lembrar, aliás, que Jesus nasceu e morreu fora dos muros da cidade, respectivamente em Belém e em Jerusalém.  “Não havia lugar para eles dentro de casa”, diz o Evangelho, e Maria teve de dar à luz na manjedoura de uma gruta, entre os animais (Lc 2,7). As raízes do Reino são lançadas a partir desse não lugar dos pobres. Depois, em sua vida adulta, como um pregador itinerante, “Jesus percorria cidades e aldeias”, caminhando ao encontro das “multidões cansadas e abatidas”. Ao encontrá-las, “tinha compaixão” porque eram como “ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38). O coração do Bom Pastor está em sintonia com o sofrimento daqueles que, na vida e na história, são vítimas de estruturas injustas. Por isso é que o chamado “programa” de Jesus é tão explícito na afirmação de que o Reino de Deus é uma “Boa Nova para os pobres” (Lc 4, 16-20).

Por outro lado, como bem sabemos, esta predileção de Deus pelos pobres e indefesos constitui o fio condutor de toda a Bíblia. Nesta perspectiva, vale a pena confrontar o “credo histórico” do antigo Povo de Israel (Dt 26,5-10) com sua versão original (Ex 3,7-10). Entre os dois textos, aparecem quatro verbos, conjugados na primeira pessoa do singular, todos colocados na boca de Javé: eu vi a miséria do meu povo, eu ouvi seu clamor, eu conheço seu sofrimento e eu desci para libertá-lo. Verbos fortes e diretos! Expressam uma profunda sensibilidade para com as condições reais, vale dizer materiais, dos hebreus escravizados no Egito.

Se nos damos conta que estamos diante do episódio fundante e original do Povo de Israel, concluímos que esse relato traduz a experiência de um Deus diferente dos deuses de todos os outros povos. De fato, Javé se revela como um Deus atento e solidário à situação concreta de seu povo sob a tirania do Faraó. Envia Moisés para conduzi-lo a uma nova terra e caminha com ele na história. Mas não é só isso. Trata-se, mais que tudo, de um Deus que toma partido diante de uma realidade de injustiça e desigualdade social. Quase diríamos um Deus parcial diante de uma situação de flagrante parcialidade. Um Deus que aparece como Pai, mas tem um coração de mãe. Ama a todos os filhos e filhas, evidentemente, mas manifesta predileção especial e inegável por aqueles que, pelos mais diversos motivos, têm sua vida ameaçada. Faz lembrar um provérbio chinês, segundo o qual perguntaram a determinada mãe a qual dos filhos ela mais amava, e a mãe respondeu sem hesitar: ao mais triste até que sorria, ao mais distante até que volte, ao mais doente até que sare, ao mais pequeno até que cresça. De resto, a predileção de Javé pelos pobres será amplamente confirmada no decurso dos outros livros bíblicos, onde “o órfão, a viúva e o estrangeiro” ocupam um lugar privilegiado no coração de Javé.

Javé não apenas vê, ouve e conhece a situação do povo, mas desce para libertá-lo.  Teologicamente, esse ato de descer ganha sua plenitude total no mistério da encarnação, quando o “Verbo se faz carne e vem habitar entre nós” (Jo 1,1-18). Ou seja, a Palavra se faz presença viva no meio dos homens e mulheres, converte-se em um andarilho que “não tinha onde repousar a cabeça”, experimentando no corpo e na alma a existência precária da enorme multidão dos “sem”: sem terra, sem raiz, sem rumo, sem emprego, sem teto, sem saúde, sem família, e assim por diante.

 

3. Reciclar a vida

Mas há um outro motivo ainda pelo qual a rua constitui um lugar teológico. Nela moram e trabalham centenas de pessoas que vivem da reciclagem de materiais descartáveis, tais como latas, papelão, plásticos, etc. As mãos que aprendem a reciclar o que nós chamamos de “lixo”, potencialmente serão capazes de reciclar a própria vida. O ato de reaproveitar objetos que outros jogam fora, por si só, não deixa de ser uma crítica, aberta ou velada, à sociedade de consumo em que vivemos.

a). Reciclar é dizer que nem tudo é descartável. Podemos reutilizar muitas coisas que, segundo nossos padrões irresponsáveis, não servem para mais nada. Com isso, a sociedade economiza e preserva os recursos naturais, conferindo uma sobrevida ao próprio planeta terra/água. De fato, a longo prazo, o globo terrestre não se sustenta diante do afã de produzir e consumir que a humanidade lhe impõe, sobretudo a partir da moderna tecnologia e da economia neoliberal. Nossa civilização tornou-se predatória e devastadora, abreviando a vida sobre a face da terra. Está em jogo a biodiversidade e a garantia de vida para as gerações futuras.

Um olhar sobre o Livro do Gênesis, teologia da criação, mostrará que a aliança de Javé com o Povo de Israel, simbolizada no arco-íris, não foi feita apenas com os seres humanos, e sim com “todos os seres vivos” e com “todas as gerações futuras”. Duas preocupações sobressaem no texto: a preservação da vida em todas as suas formas e sua continuidade para aqueles que virão depois de nós. E o texto insiste: “este é o sinal da aliança que estabeleço com tudo o que vive sobre a face da terra” (Gn 9,12-18).

Reciclar é, pois, contribuir para usar com mais responsabilidade os bens que Deus colocou à disposição dos homens e mulheres. Transparece aqui um compromisso com uma vida frugal, sóbria e responsável, em contraposição ao luxo ostensivo e ao desperdício das sociedades de consumo. E isso não só em relação à vida pessoal ou familiar. No futuro, a própria civilização deve ser planejada levando-se em conta um desenvolvimento social e ecologicamente sustentável. Ou seja, os recursos de que a humanidade dispõe devem ser distribuídos com justiça responsabilidade.

b). Por outro lado, se é verdade que reciclar é dizer que nem tudo é descartável, significa que as relações humanas também devem passar por transformações profundas. Desejos, sentimentos e laços não podem, sem mais, ser rompidos ou pisoteados. O outro não pode ser instrumentalizado para meus fins pessoais, sejam eles quais forem. Em definitivo, a pessoa é um fim em si mesma e sua dignidade deve ser preservada a qualquer preço.

As mãos que no dia a dia reciclam os materiais ditos descartáveis estão virtualmente aptas a refazer o tecido social, hoje esgarçado, das relações pessoais, familiares, comunitárias, políticas, culturais e econômicas. Trata-se, no fundo, de repensar toda a cultura humana, a própria civilização. Uma vez mais, reaproveitar objetos é dar-se conta que os fios de conexão e intercâmbio entre as pessoas também podem ser “reciclados”. A prática diária de reciclar pode ensinar, e de fato ensina, a costurar novos laços de amizade e compromisso. Basta perceber como os moradores da rua muitas vezes desenvolvem novas formas de solidariedade. Em meio à precariedade de suas vidas sempre ameaçadas, aprendem a repartir o pouco que tem com quem tem menos ainda. Aliás, essa não deixa de ser uma base sólida para as cooperativas de catadores de material reciclável, as quais se multiplicam por todo país.

Semelhante prática solidária, freqüentemente constatada entre aqueles que experimentam na carne as piores privações, pode ser transferida para as relações sociais, políticas e econômicas. É o que se verifica, por exemplo, em milhares de iniciativas populares de economia solidária que hoje estão em curso por todo território nacional. Quando levada ao limite, pode inclusive abrir caminho para novas formas de intercâmbio em termos nacionais e até internacionais.

c). Por fim, reciclar é ainda reciclar-se a si próprio. As mãos que aprendem a reaproveitar os objetos, serão igualmente capazes de reorientar suas energias, suas motivações pessoais e seus sonhos. As mesmas mãos que transformam a matéria tornam-se mais aptas a transformar o espírito. Entramos aqui na própria teologia do trabalho e da criação. Quem aprende a moldar as coisas, aprenderá com maior facilidade a moldar a si mesmo e aos outros. O costume de tomar do chão os materiais e dar-lhes um novo destino, faz refletir sobre a possibilidade de levantar-se do chão e refazer o próprio projeto de vida. Se os objetos, já considerados perdidos, podem ser transfigurados e reutilizados, com maior razão as pessoas podem reorientar sua existência.

Em outras palavras, do ponto de vista teológico, pelo seu trabalho os seres humanos são chamados a continuar o processo criativo desencadeado por Deus. E podem fazê-lo criando e recriando continuamente as coisas e as pessoas, dando-lhes destinos inovadores. Por isso que o trabalho de reciclar abre espaço para refletir sobre um processo mais amplo e profundo de reciclagem. Processo que inclui uma reciclagem em várias dimensões: reciclagem da pessoa consigo mesma; reciclagem das relações de gênero, raça e etnia; reciclagem da convivência pacífica e criativa entre os seres humanos e as demais formas de vida do planeta; reciclagem na forma de utilização e distribuição dos recursos naturais; reciclagem das relações sócio-econômicas e político-culturais, enfim, reciclagem da relação com o outro e com o totalmente Outro.

 

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