Singular e Plural

Dom Demétrio Valentini

Com o início da primavera, celebramos no dia 21 de setembro São Mateus, autor do evangelho que leva o seu nome.

É mera coincidência. O que não deixa de ter o seu simbolismo, como toda vez que evocamos a natureza para expressar nossos pensamentos. Como fazia Jesus com suas parábolas.

Pois bem, os evangelhos se assemelham, sim, à primavera, que encanta com sua exuberância de vida e diversidade de flores. O evangelho também é diverso, ele é plural. Não temos só um, temos quatro evangelhos. Não só o de Mateus, mas também os evangelhos de Marcos, Lucas e João. E poderíamos acrescentar os diversos outros evangelhos encarnados nas cartas de S. Paulo e nas narrativas da Igreja nascente.

Sabemos que foram muitas as tentativas de recolher o tesouro deixado por Cristo, através de sua vida e dos seus ensinamentos. O próprio Lucas começa a sua narrativa constatando esta multiplicidade de intentos.

Aos poucos, chegou-se ao consenso de definir quais os evangelhos que seriam acolhidos como referência segura e definitiva da fé cristã.

É muito significativo que o zelo da Igreja pela autenticidade dos escritos do Novo Testamento não a levou a optar por um só, mas por quatro evangelhos. Assim, ficou atestada, de maneira factual e concreta, a pluralidade de enfoques que o mistério cristão comporta, sem prejuízo da validade de cada intento. Se tivesse prevalecido a rigidez da uniformidade, teríamos hoje só um evangelho, e os outros três teriam talvez desaparecido para sempre.

Mas, graças a Deus, permaneceram os quatro. Com isto, ficou consagrada a pluralidade, e fica aberto o caminho para a diversidade de expressões teológicas, que já pode ser constatada nos próprios livros do Novo Testamento.

A atitude de tolerância acompanhou os primeiros passos da Igreja, e se coadunou bem com a postura de segurança e de autenticidade que presidiu a definição do elenco canônico dos livros do Novo Testamento.

A responsabilidade não suprime a diversidade. A certeza não exige a padronização. Esta abertura de espírito precisa continuar acompanhando a vida da Igreja, também na expressão humana das verdades da fé.

O alcorão dos muçulmanos é muito mais monolítico do que o nosso Novo Testamento. Muitos atribuem a este fato a freqüente tendência à intolerância e ao fanatismo, que se observa na religião muçulmana. Falta-lhe o jogo de cintura que a diversidade dos evangelhos nos educa a ter.

É possível alargar as referências. Como são diversos os evangelhos, as teologias são diversas. E nenhuma delas pode ter a pretensão de ser melhor do que as outras, ou ser erigida em modelo para todas. Ainda mais se ela mesma se atribui esta pretensão, desprezando as outras. O risco do fanatismo precisa ser esconjurado, até na formulação dos dogmas. Eles contam com a certeza da autenticidade, mas não pretendem o monopólio da exclusividade.

Os quatro evangelhos testemunham a inesgotável riqueza do mistério de Cristo, e nos incentivam a acolhê-la com abertura de espírito, no respeito às tentativas dos outros, e na consciência dos nossos próprios limites. Assim fica exaltada a grandeza de Deus e relativizada a capacidade humana.