Três vezes órfãs

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Refiro-me à chamada “gangue das meninas” que, há algum tempo, vem aterrorizando os moradores da região da Vila Mariana, zona sul de São Paulo – SP. Aparentemente são crianças e, segundo elas próprias, estão abaixo dos 12 anos. Realizam furtos a estabelecimentos comerciais de toda ordem, com também a transeuntes desprevenidos. De acordo com os representantes de tais estabelecimentos e de outras testemunhas, são cerca de 10 a 12, e costumam agir com surpreendente irreverência e agressividade, mesmo diante dos policiais. Com frequência, usam material de limpeza (solventes, por exemplo) para drogar-se. Quase todas já passaram mais de uma dezena de vezes pela delegacia, por abrigos para menores, pelo Conselho Tutelar ou por casas de correção.

São, acima de tudo, órfãs de pai e mãe. Órfãs de um ambiente familiar sadio e equipado com as mínimas condições de sobrevivência. Trata-se, portanto, de um punhado de meninas abandonadas, filhas de pais pobres e igualmente abandonados: ao desemprego e subemprego, à pobreza à miséria pura e simples, quando não ao mundo da droga. Seus familiares perderam completamente o controle sobre elas e não mais as conseguem mantê-las em casa. A polícia prende em flagrante, leva-as até algum abrigo, mas o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), impede a detenção de crianças com idade inferior a 12 anos. Raramente alguém da família aparece para reivindicar qualquer parentesco, e menos ainda qualquer tipo de responsabilidade. O resultado é a volta inevitável às ruas e à prática do furto, um novo confronto com a polícia, a impossibilidade legal de prisão, novamente a rua… E assim sucessivamente, sem sinais visíveis de reversão positiva.

São órfãs do Estado e de uma cidadania digna. Sem casa e sem pátria! Se a família se revela incapaz de cuidar e zelar pelo futuro dessas meninas, semelhante tarefa deveria recair sobre as instâncias de defesa das crianças e adolescentes, como reza o ECA ou como garante a própria Constituição brasileira. Ou ainda, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social” (Artigo XXV, nº 2). Com o pretenso amparo dessas leis, por um lado, e de fatos tão desoladores e rotineiros, por outro, uma série de perguntas se levanta. Quem está por trás desse grupo de menores, usando-as para os trabalhos sujos do crime? Onde estão as políticas públicas de proteção à infância e adolescência? Como garantir a essas meninas, entre tantas outras, alimento, vestuário, carinho, moradia, escola, lazer e perspectiva de futuro… Entre outros direitos básicos? Por outro lado, como garantir a paz para os pequenos e médios comerciantes que precisam trabalhar para sustentar suas famílias? Enfim, e pior que tudo, como preservá-las de uma dependência tóxica inevitável, bem como de uma delinqüência precoce? Sem família e sem a presença dos órgãos do Estado, até quando elas permanecerão vivas?

Não se trata de transferir o problema para o âmbito da segurança pública. Embora seja a polícia e o poder judiciário que, frequentemente, lida com elas, não se trata de reduzir a questão a “um caso de polícia”. O contexto socioeconômico, que as fez crescer como “erva daninha” em meio à chamada “sociedade de bem”, desde cedo atirou-as à beira da vida e da história.  Nasceram e se criaram, em geral, à margem de qualquer oportunidade de estudo e trabalho e, por consequência, sem horizontes mais amplos. Pois não raro as “pessoas do bem” são confundidas com as “pessoas de bens”, não importando a forma como esses foram adquiridos. Tampouco se trata de jogar o fardo inteiro sobre os ombros dos pais (sem desconhecer que em alguns casos, e pelos motivos mais variados, estes contribuem para agravar a situação). No fundo, deparamo-nos com um modelo político e econômico que, impulsionado pelo motor do lucro e da acumulação de capital, abandona ao desdém e à própria sorte boa parcela da população. Como lembram os bispos da América Latina e Caribe no Documento de Aparecida, “já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela, a pertença à sociedade na qual se vive fica afetada na raiz, pois já não está abaixo, na periferia ou sem poder, mas está fora. Os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” (DA, nº 65).

Mas, pior que tudo, são órfãs de uma liberdade fácil, traiçoeira e ilusória. De fato, em nossa sociedade do espetáculo e do sensacionalismo, o conceito de liberdade está completamente desvirtuado. Os palcos iluminados das ruas e da mídia em geral difundem a noção de que a liberdade está ligada à capacidade de produzir ou ao poder de ter, consumir, fazer, aparentar… Não necessitamos de muitas pesquisas para constatar que a liberdade sem limites e sem qualquer espécie de regra é terreno ambíguo que pode levar ao abismo. A porta larga de “fazer aquilo que se quer” conduz, não raro, aos becos sem saída da droga e do roubo, da prostituição e da violência, do crime e da morte. Semelhante modo de entender a liberdade torna as crianças vítimas de sua própria vontade, da mesma maneira que torna a sociedade refém de seus filhos menores. Se, por uma parte, a sociedade retirou da família o direito e o dever de impor limites no processo de formação e crescimento de seus descendentes, por outra, nenhuma instituição social, assistencial ou religiosa assume hoje tal encargo. Resulta que, num terreno tão minado por apelos estridentes e permissivos, especialmente no universo urbano, as crianças caminham à deriva. Frágeis e facilmente vulneráveis às gangues de pessoas experimentadas no crime organizado, as quais, explorando sua inocência e imunidade, as condenam ao vício e à morte antes dos 15, 20 ou 30 anos. Muitas vezes adquirem precocemente os vícios dos adultos, sem dar-se conta da responsabilidade que isso comporta. Daí a dificuldade de responder por seus próprios delitos.

A verdadeira liberdade, aquela que cria alicerces sólidos e educa para o futuro, supõe um duplo acompanhamento. Primeiramente, uma atenção paterna, materna e familiar, amorosa sem dúvida, mas responsável por delimitar o contexto básico dos direitos e deveres. Uns e outros se complementam e retroalimentam. Em segundo lugar, a capacitação para uma convivência pacífica e para defender-se em sociedade. O que inclui educação, capacidade de escolha profissional e senso de responsabilidade frente a si mesmo, aos outros e à construção de uma cidadania. Desnecessário lembrar o quanto, no Brasil, estamos longe disso! E quantas crianças, adultas antes da infância, prosseguem por mares bravios, sem qualquer esperança de vislumbrar o farol de um porto seguro!

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