Um ano do Papa Francisco

Pe. Alfredo J. Goncalves, CS

O primeiro ano de pontificado do Papa Francisco constitui um bom motivo para um olhar ao mesmo tempo retrospectivo e prospectivo, tendo em vista não só a attitude de sua pessoa, mas também as possibilidades de mudanças nos rumos da Igreja como Instituição. Nos parágrafos que se seguem, e de forma abolutamente provisória, podemos apontar quarto breves aspectos como pontos de partida para uma avaliação mais acurada.

  1. 1.      Primado da sensibilidade social e da ação pastoral.

Não se trata evidentemente de negar o valor do aprofundamento doutrinário e bíblico-teológico, e menos ainda a tradição dogmática positiva na trajetória da Igreja. Diferentemente de seus imediatos antecessores, porém, o atual Papa revela uma preocupação centralizada muito mais na solicitude do vigário de Cristo para com “as multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 35-38) do que na defesa intransigente de uma moral rígida e tradicionalista. Seu olhar e gestos, suas palavras e ações demonstram uma solicitude pastoral que se sobrepõe ao doutrinamento sistemático. Retoma-se assim o espírito da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concilio Ecumênico Vaticano II.

Frente aos desafios de uma socidade cada vez mais globalizada e complexa, plural e diversificada – marcada pela sensação de orfandade, solidão e falta de sentido – o Papa aponta a necessidade de uma Igreja menos propensa á defesa dos dogmas, à catequese proselitista e à publicação de tratados teológicos… Inversamente, emerge claramente uma postura mais aberta ao diálogo e à compreensão frente às “alegrias e esperanças, tristezas e angústias” dos homens e mulheres de nossos dias. Tudo isso traz à tona a figura do Bom Pastor em busca da “ovelha perdida” (Jo 10, 1-16), o qual usa o bastão não para golpear o “rebanho” já ferido por tantas adversidades, e sim para afugentar os lobos vorazes e exploradores. Relembra também o cuidado do Bom Samaritano para como o “caído” à bera da estrada (Lc 10,25-37), além dos “famintos, sedentos, estrangeiros, sem roupa, doentes, prisioneiros”… Os crucificados de hoje da parábola sobre o Juízo Final (Mt 25,31-46).

  1. 2.      Primado da Igreja como Povo de Deus.

Reportemo-nos mais uma vez ao Concílio Vaticano II, particularmente a dois documentos de fundamental importância:  a Constituição Lumen Gentium, sobre a Igreja e  Decreto Ad Gentes, sobre sua ação missionária. De uma parte, a Instituição Católica faz-se luz dos povos na medida em que, a exemplo de Jesus, o Pontífice, os bispos/pastores, os presbíteros, os religiosos/as, os agentes de pastoral e os cristãos em geral dispõem-se a caminhar junto com todos, e de forma especial com os mais atribulados. Em meio a essa “multidão dos sem”, tratam de ouvir, acompanhar e ser solidários com seus dramas. De outra parte, isso somente será possível numa Igreja integralmente missionária: ou seja,  menos concentrada no interior da sacristia, num liturgismo ritualista e estéril, em pompas e solenidades principescas, enfim, numa exterioridade triunfalista e medieval… E mais, muito mais sensível e solidária diante do que ocorre fora de seus muros. Numa palavra, mais preocupada com o espírito evangélico do serviço e menos propensa ao poder/riqueza/imagem.

Na recente Exortação Apostólica – Evangelii Gaudium – o Papa Francisco insiste sobre ambas as dimensões. Confere especial atenção ao contato vivo e criativo com o povo, contato que transparece de forma visível e notória nas visitas e audiências, bem como no dia-a-dia de sua missão como bispo de Roma. Ao mesmo tempo, cita com insistência o Documento de Aparecida sobre a renovação do espírito missionário de toda a Igreja. Prevalece não a concepção piramidal da Igreja Hierarquia, e sim a concepção de Igreja “comunhão e partilha”, que caminha ao encontro da humanidade, levando em conta suas dores e temores, lutas e esperancas. Profila-se maior espaço a uma efetiva colegialidade, bem como à participação mais ampliada na tomada de decisões no interior dessa Instituição bimilenar. Isso sem falar da abertura ao ecumenismo e ao encontro inter-religioso.

  1. 3.      Primado da opção preferencial pelos pobres.

Convém citar diretamente as palavras do Pontífice, em entrevista aos jornalistas, nos primeiros dias de seu pontificado: “Como gostaria de uma Igreja pobre para os pobres, os pequenos, os últimos, os mais necessitados”. Frase que nos reporta ao espírito do pobre de Assis, de quem tomou o nome ao ser eleito, e que expressa, ao mesmo tempo, um desejo e um desafio. O desejo está explícito na própria formulação da frase. E mais, comparece com frequência não apenas em outras declarações do Papa, como também em seus gestos simultaneamente reais e simbólicos, em seu sorriso acolhedor e em seu comportamento de pastor. Quanto ao desafio, implícito na conjugação do verbo no futuro, vem da consciência de que não faltam dificuldades e resistências para as mudanças necessárias, tanto fora quato dentro da propria Igreja.

De qualquer forma, sua postura pastoral revela-se biblica e pastoralmente profética: os pobres como prediletos do Pai não são apenas vítimas indefesas e anônimas, mas sujeitos e protagonistas da própria história. Através deles, Deus irrompe no tempo para quebrar as cadeias dos tiranos e tiranias, do pecado e da opressão, abrindo novos horizontes e alternativas à trajetória da humanidade. Nessa tomada de posição, evidicencia-se o resgate da contribuição ligada às Comunidades Eclesiais de Base, às Pastirais Sociais e à reflexão crítica da Teologia da Libertação. Prova disso foi a recente e inédita carta enviada pelo Pontífice ao Encontro Intereclesial de CEBs.

  1. 4.      Pimado da misericórdia e da compaixão.

Neste item entramos no coração mesmo da figura do Papa Francisco. Não poucos de seus gestos e pronunciamentos colocam a “misericórdia do Pai” como núcleo da solicitude pastoral. “Deus jamais se cansa de perdoar, somos nós que que nos cansamos de pedir perdão”, diz com frequência. E em outra ocasião: “Não tenham medo da ternura e da bondade”. Ou ainda: “A Igreja Católica deve ser como um hospital de campanha após a batalha”, o que significa curar as feridas, com uma atitude de misericórdia que precede o julgamento, isto é, sem perguntar de que lado do front chegam as vítimas. Além disso, o lavapés com os prisioneiros, os telefonemas aos doentes e aflitos, a ceia de Natal com um grupo de pessoas da rua – entre tantos outros exemplos, às vezes polêmicos para determinadas posturas tradicionalistas – revelam um coração materno numa Igreja que, desde João XXIII, se considera Mater et Magistra. De resto, o espírito de tal comportamento vem das páginas do próprio Evangelho: “Quero a misericórdia, não o sacrifício”, diz Jesus (Mt 9, 13). Transparece o rosto de uma Igreja atenta, sensível e solidária diante dos pobres e excluídos, “feições sofredoras de Cristo” (Doc. Puebla, 31-39).

Conclusão

Do que vimos nos itens acima sobre os 12 meses de pontificado do Papa Francisco, resulta claramente uma visão eclesial e pastoral onde o formalismo legalista, o aparato burocrático e estrutural e o modelo de cristandade são substituídos por uma abertura simples, alegre, confiante e esperançosa para com o futuro da Igreja e dos fiéis. Numa palavra, a perspectiva do perdão, do amor e do serviço se revela muito mais propícia ao diálogo e ao encontro com os desafios do mundo de hoje do que a rigidez inflexível e moralista da lei e do julgamento. Tudo isso, evidentemente, sem jamais abdicar dos princípios e valores da fé cristã e da defesa da dignidade da pessoa humana.

Roma, Itália, 28 de fevereiro de 2014