Um filho do Concílio: frei Paulo Evaristo Arns

Fernando Altemeyer Junior

Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo emérito de São Paulo, faleceu em 14 de dezembro de 2016 com 95 anos e três meses sendo reconhecido internacionalmente como literato, teólogo, patrólogo, profeta da metrópole paulistana, defensor da pessoa humana diante da ditadura miliar e um humilde frade franciscano, assumido como irmão universal, por seu amor perseverante e fecundo em vinte e sete anos como bispo paulistano. Mas poucos sabem que uma de suas maiores qualidades foi fazer realidade às decisões do Concílio Vaticano II. Dom Paulo é um dos filhos do Concílio e pastor fiel em sua aplicação pastoral junto aos empobrecidos.

Nascido em uma família de colonos alemães no sul do Brasil, em 14 de setembro de 1921, decide seguir o caminho da vida religiosa na ordem dos frades franciscanos. É ordenado sacerdote em 30 de novembro de 1945. Realiza estudos acadêmicos na Sorbonne defendendo sua tese em 03 de maio de 1952 sobre a Técnica do livro segundo São Jerônimo.

Dom Paulo foi marcado pelo pensamento da Nouvelle Théologie, particularmente dos teólogos jesuítas e dominicanos como Daniélou e Congar, que lia como que comendo “pão doce catarinense” e habituou-se a ouvir as conferências de François Mauriac, Paul Claudel, Jean-Paul Sartre, e a aprofundar os textos das aulas de Emanuel Mounier e Henri De Lubac. Ao voltar ao Brasil será professor até ser sagrado bispo auxiliar da cidade de S. Paulo em 03 de julho de 1966, sete meses depois do término do Vaticano II. Será feito arcebispo metropolitano em 1º. de novembro de 1970 e e pouco depois elevado a cardeal em 5 de março de 1973. Exercerá o cargo de arcebispo paulistano durante 27 anos até sua renúncia em 1998, sendo sucedido por Dom Frei Cláudio Hummes.

Figura central da Igreja brasileira durante o período de 1964 a 1985 quando do longo período ditatorial destaca-se na firme e pacífica defesa dos direitos humanos para pessoas que todas e quaisquer nacionalidades, ideologias ou grupos políticos ou sociais. Defensor da vida e da pessoa humana assumiu como tarefa de vida o lema que consta em seu brasão episcopal e cardinalício: De esperança em esperança. Ressoa claramente seu vínculo com a Gaudium et Spes.

Grão-chanceler da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, acolherá professores que o regime militar aposentou, perseguiu ou censurou como Florestan Fernandes, Ottavio Ianni e Paulo Freire entre tantos. Dom Paulo aplica concretamente cada palavra do documento Dignitatis Humanae, da Nostra Aetate e, sobretudo, os desafios propostos pela Ad Gentes.

Membro de diversas comissões internacionais de Direitos Humanos, particularmente da Comissão Internacional Independente da ONU para questões humanitárias. Comendador da Legião de Honra do Governo da França pelo testemunho de sua vida em favor dos empobrecidos e da justiça social. Possuí vinte e três títulos de Doutor Honoris causa, no Brasil e no exterior com destaque para o doutorado em Direito, concedido pela Universidade de Notre Dame, Indiana, nos Estados Unidos, em 22.05.1977, recebido conjuntamente com o presidente norte-americano, o democrata Jimmy Carter. Recebeu trinta e quatro cidadanias honorárias. No cargo de cardeal da Igreja católica sofreu pressões duríssimas por seu engajamento em favor de toda pessoa humana nas terras latino-americanas. Realizou governo colegiado e contínuo empenho em construir Igreja aberta aos homens e mulheres urbanos que vivem na cidade cosmopolita um novo modo de pensar e agir, como verdadeira igreja Povo de Deus em marcha. Dom Paulo encarnou na Igreja local o que fora promulgado pelos padres conciliares na Christus Dominus e Lumen Gentium.

Patrocinou a edição do best-seller “Brasil, nunca mais”, que retrata os porões da ditadura e os sofrimentos vividos por centenas de brasileiros torturados clandestinamente pelos militares no Brasil. Graças a essa obra não se perdeu a memória da ignomínia praticada contra a pessoa humana no Brasil. Seus sermões pastorais na Rádio Católica Nove de julho, foram impedidos de serem emitidos, por uma arbitrária decisão do general presidente que interrompeu o direito democrático de opinião por vinte e seis anos, ou seja, praticamente todo o tempo do exercício de seu episcopado.

Criou a Comissão Justiça e Paz e o Centro Santo Dias da Silva formados por eminentes juristas, muitos deles advindos da Ação Católica e marcados, também eles, pelo personalismo de Jacques Maritain. Estes homens e mulheres até hoje lutam contra a impunidade e a violência policial. Recebeu vinte e nove medalhas entre as quais se destacam a de Grão-Oficial da Ordem El Sol del Perú, do governo peruano, 06 de março de 1972 e, a da Gran Cruz da Ordem de Bernardo O’Higgins, do Presidente da República do Chile, outorgada em 04 de outubro de 2000 e entregue em 29 de julho de 2001 pela defesa da vida de cidadãos chilenos perseguidos pelas ditaduras brasileira e chilena. Fez de sua Cúria o refúgio de todos os exilados e perseguidos como bom samaritano que crê da Palavra que é verdade e vida. Dom Paulo fez como ninguém que a Dei Verbum fosse amada e conhecida.

Sua presença constante nas comunidades da periferia com palavras corajosas na defesa das mulheres, dos favelados, das crianças e moradores de rua lhe valeram campanhas difamatórias contínuas por parte de policiais e agentes da direita brasileira. Vale lembrar que quando o menino Joílson de Jesus morreu pisoteado no Largo de São Francisco, por um advogado, D. Paulo Evaristo celebrou um missa na Catedral e um radialista famoso convocou a população da cidade para que fosse até a Catedral para espancá-lo. Felizmente a voz do pastor prevaleceu. “Uma pessoa vale mais que todo o ouro do mundo e quem nela toca, fere o próprio Deus Criador” foi a palavra do profeta. Essa é a teologia que sustenta o seu pensamento. Um humanismo cristão que bebe nas fontes dos Evangelhos, passa pela Patrística e assume radicalmente as decisões do Concílio Vaticano II. Proclamar a dignidade humana sobre os telhados. Isto é o que pede a Inter Mirifica como uma tarefa central de todo comunicador cristão. Pregar com a vida e o testemunho.

Acolheu em sua Catedral na Praça da Sé, inúmeros líderes muçulmanos, judeus, budistas, evangélicos, afro-brasileiros e o próprio Dalai Lama. Como reconhecimento por sua atuação em favor dos refugiados recebeu o Prêmio Internacional “Medalha Nansen”, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), concedido no Palácio das Nações Unidas em Genebra, Suíça, em 07.10.1985. Sempre atento às causas concretas do povo brasileiro é ardoroso defensor da Reforma Agrária e da participação efetiva do povo na escolha de candidatos que defendam em suas vidas os verdadeiros anseios populares. Sempre e de maneira independente valorizou a participação dos leigos na vida política, sindical e associativa em bairros, associações e agrupamentos sociais em favor da cidadania e da comunicação. Lutou ardorosamente pelo voto consciente e por uma educação de base, e sempre se identificou com a Teologia da Libertação, na defesa da Igreja dos pobres preconizada pelos padres no Concílio Vaticano II. Devemos destacar, dentre os 51 livros de sua autoria, três que manifestam seu pensamento humanista: I poveri e la pace prima di tutto, Ed. Borla, Roma, Itália, 1987 e Von Hoffnung zu Hoffnung. Vortragre, Gesprache, Dokumente, Patmos Verlag, Dusseldorf, Alemanha, 1988; Conversa com São Francisco, Paulinas, São Paulo, 2004.

A PUC-SP invadida pelas forças de segurança da ditadura militar, por duas vezes, teve em Dom Paulo a firmeza permanente para assumir a reitora Nadir Kfoury e seus vice-reitores a coragem de enfrentar os prepotentes. Foi um momento dramático que forjou uma geração e um símbolo perene. A PUC-SP, casa da excelência acadêmica, deve a Dom Paulo o acolhimento de professores de todas as escolas de pensamento sem qualquer obscurantismo ou dirigismos externos.

Este é Dom Paulo, o Cardeal dos pobres, homem fidelíssimo ao Concílio Vaticano II e ao seu Espírito renovador. Um bispo, filho do Concílio em pensamento, palavras e ações. E que pediu para ser lembrado como amigo do povo.