A experiência da misericórdia

Antônio Mesquita Galvão

Senhor, tem piedade de mim!

A mística moderna fala muito em experiências de oração e de escuta, mas se esquece, vez por outra, daquela que é a maior delas: a experiência da misericórdia de Deus. Enquanto aquelas duas são individuais, esta só ocorre plenamente mediante a vivência comunitária. Nunca teremos uma visão adequada de Deus e do seu Reino se não compreendermos a dimensão exata de sua misericórdia.

Assim, se as experiências de oração, de interiorização e escuta não se fecharem como um fim-em-si, mas se abrirem à prática evangélica, pastoral e social, seguramente irão atingir o estágio do compromisso com a alteridade, que passa pela misericórdia. Etimologicamente vemos que a misericórdia se compõe em miser (miséria) + corde (coração). Isto significa sentir com o coração os sofrimentos e as dores de alguém que sofre suas misérias. Assim como Deus tem misericórdia, pena de nós, por sermos fracos e pecadores, assim deve ser, igualmente, nossa atitude com relação aos nossos irmãos, em especial os mais fracos. A miséria tanto pode ser material como espiritual, e também afetiva. No hebraico bíblico vamos encontrar o verbete hesêd, a exprimir aquela misericórdia que socorre e consola.
Seu significado é semelhante ao carinho de um rei por seus súditos ou de um pai pelos filhos.

Caracteriza sempre uma ajuda, atual, plena e eficaz a quem precisa. Abrange, muito além do “querer bem”, aproximando-se, sobretudo do “fazer o bem”. Como o hesêd hebraico (é masculino) tem por base os laços existentes, seja de parentesco, matrimoniais ou de aliança, para que efetivamente ocorra, precisa ser praticado, indo além do discurso. Como ação de Deus, vem sempre acompanhada do ‘emmet (a verdade, o amém) e da mishpat (a justiça). Pois o hesêd traz consigo um sentimento ainda mais profundo, a compaixão, retratada pelo verbete helênico éleos.

Trata-se de “sentir com as entranhas”, isto é, algo que caracteriza o amor da mãe por seu filho recém nascido. Depois vamos falar mais nisto. Em virtude da aliança, o salmista ousa cantar, com freqüência, que a misericórdia de Deus é eterna (Sl 26,5). Deste modo o hesêd, de Deus tornou-se também um conceito escatológico (cf. Sl 90, 14). No Novo Testamento, a misericórdia de Deus se manifesta integralmente em Cristo.

A experiência da misericórdia de Deus deve levar a pessoa a ter misericórdia com seu semelhante: Sejam misericordiosos como o Pai de vocês é misericordioso (Lc 6,36). A atitude religiosa, uma vez que somos humanos, não pode se limitar ou restringir a movimentos espirituais, alguns às vezes alienantes, mas deve se traduzir em atos, em prática, em atividade de misericórdia, com o que sofre, passa fome ou precisa de nossa solidariedade (cf. Mt 25,31-46). O amor que dimana do divino hesêd, é um afeto puro, desinteressado, crescente e comunicante. Deus ama e se dá sem medidas. Esta é a grande lição da misericórdia.

Para orientar nossa experiência da misericórdia divina, é salutar que se leia e reflita aquelas que são chamadas as “parábolas da misericórdia”, contidas no capítulo 15 do evangelho de Lucas. Revelando que é possível ao ser humano ter misericórdia com o próximo, Jesus incluiu esse sentimento-prática entre as bem-aventuranças (cf. Mt 5,7). Pela boca do profeta Deus convida “façam a experiência da minha misericórdia, e verão como eu vou além…”. (cf. Ml 3,10ss).

Maria, a mãe de Jesus, à porta da casa de sua parenta Isabel, cantou a misericórdia de Deus: “O Todo-Poderoso realizou grandes obras em meu favor: seu nome é Santo e sua misericórdia chega aos que o temem, de geração em geração” (Lc 1, 49s). O amor cristão é sinal do amor de Cristo que viveu sua paixão, isto é, amou até sofrer. A esse amor, a teologia dá o nome de agápe.

A palavra misericórdia, eléos, no grego, e hesed, no hebraico, como já falamos, é completada com o verbete rahămim (sentir, como uma mãe, com as entranhas). A hesed personifica boas relações entre pessoas, querer bem, fazer o bem, ter afeto, desenvolver fidelidade, exercer solidariedade. Nessa relação, surgem outros vocábulos correlatos, como ‘emmet (verdade, fidelidade), sedaká (justiça) e mišpāt (direito). Como curiosidade, vale relatar que o verbete misericórdia aparece cerca de 102 vezes nas Sagradas Escrituras, conforme atestam as “chaves bíblicas” existentes no mercado.

Há uma ênfase especial que pervade a Bíblia, no que se refere à misericórdia. O termo hebraico hesêd, designa todos os laços que ligam os membros de uma comunidade: favor, benevolência, afeto, bondade (Gn 20,13; 47,29; 1Sm 20,8-15; Sl 36,6-11). Desde o começo da aliança fala-se exclusivamente da misericórdia de Deus, no sentido de amor gratuito.

Assim, misericórdia de Deus é amor aos mais pobres, entre os quais sobressaem os pecadores (Is 14,1s; Lc 10,29-37; Jo 10,1-21). A graça e misericórdia de Deus se corporizam em Cristo (2Cor 5,18-21;Gl 2,21; Ef 2,4-7; Cl 2,13s), onde se verifica o amplo cumprimento das promessas das Escrituras.
A misericórdia do homem, como resposta à misericórdia de Deus, é mais importante que os atos de culto (Os 6,6; Mt 5,7; 9,10-13; Lc 13,6-9; 15,1-32), alguns, meras formas de costume, distantes da verdadeira adoração. Jesus testemunhou sua misericórdia e fidelidade ao projeto do Pai, não somente por palavras mas através de gestos de perdão, cura e acolhida:

§ perdoou a adúltera ao invés de condená-la ( Jo 8, 3-11);
§ curou o criado do centurião (Mt 8,6);
§ curou e perdoou os pecados de um paralítico (Mc 2,3ss);
§ ressuscitou o filho único de uma viúva em Naim (Lc 7,11-17);
§ na cruz, perdoou o ladrão e prometeu levá-lo para o Reino (Lc 23,43).

No Antigo Testamento, a hesêd de Javé não tinha o significado explícito de misericórdia como entendemos hoje, derivando para favores, como a natureza, algumas atitudes históricas, etc. À bondade de uma pessoa para a outra, num determinado momento da cultura de Israel também era vista como hesed. O livro dos Salmos é o único que credita hesêd exclusivamente aos atos de Javé: “Dêem graças a Javé, porque ele é bom, e eterna é sua hesêd” (Sl 107, 1).

Desde muito cedo, Deus revela sua misericórdia, ao libertar o povo hebreu do Egito. No Sinai, Moisés ouve Deus prometer a profundidade de seu afeto pelo povo que escolheu (cf. Ex 33, 19). Javé, Javé! Deus de compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de hesêd (misericórdia) e ‘emmet (fidelidade). Ele conserva seu amor por milhares de gerações… (Ex 34, 6-7a).

Amiúde, Deus se vê às voltas com sua própria compaixão diante da miséria a que o pecado reduz o ser humano. Pai amoroso, ele deseja que o pecador se converta e volte a ele (cf. Ez 18, 21ss). Se ele, vez por outra, faz o povo sair para o “deserto” é porque quer falar-lhe ao coração (cf. Os 2, 16). Como o Pai fala a nosso coração? Das maneiras mais diversas e surpreendentes.

Depois de algum tempo de “exílio”, representado pela angústia, pelo sofrimento, ou vicissitude, facilmente compreenderemos o que Deus quer de nós. O retorno à “terra prometida” simboliza a volta para ele, para a vida (cf. Jr 12, 15; Ez 33, 11; Is 14, 1). Deus, Pai da humanidade, pela dimensão de seu coração, não guarda rancor de nossas faltas (cf. Jr 3, 12s) mas quer que o pecador reconheça suas faltas e se converta (cf. Is 55, 7). Se converta e viva!

Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, deu-nos a vida juntamente com Cristo, quando estávamos mortos por causa de nossas faltas. Vocês foram salvos pela graça! Na pessoa de Jesus Cristo, Deus nos ressuscitou e nos fez sentar no céu. Assim, com sua bondade para conosco em Jesus Cristo, eles quis mostrar para os tempos futuros a incomparável riqueza da sua graça (Ef 2, 4-7).

A misericórdia, como o próprio nome sugere, nos retira da miséria da solidão e do pecado. Deus sente como suas, as dores do miserável. O amor confere salvação. O carinho de Deus é visto e sentido na pessoa de Cristo (cf. Ef 3, 19). Se a misericórdia é a atitude paterna de Deus para com os pecadores, o amor é o seu motivo, em tudo quanto ele faz por eles. Assim como a misericórdia de Deus é rica, assim o seu nome é grande. Pois foi com esse grandioso amor que Deus nos amou e nos escolheu, e fez isto por causa do seu amor, agindo em favor da humanidade, como sempre o faz.

O amor de Cristo, que excede todo o entendimento, precisa ser conhecido, para que o cristão seja repleto de toda a plenitude de Deus (cf. Ef 3, 19). Nessa linha de raciocínio, conhecer o amor é amar de forma integral, a Deus Uno e Trino, ao próximo e à natureza. A graça, a misericórdia e o amor de Deus ultrapassam toda a capacidade intelectual do ser humano. Só acessamos ao mistério pela inspiração do Espírito. O conhecimento faz-se de forma mística, intuitiva e experimental, pela fé.

Jesus é aquele que vem confirmar a misericórdia do Pai. Tanto assim que a expressão movido de compaixão, aparece, no mínimo, seis vezes, nos evangelhos, confirmando a misericórdia de Deus. No episódio do “bom samaritano” (cf. Lc 10, 33), este agiu movido pela compaixão, sentiu a pathos (sofrimento) do outro, como sua, desenvolveu a hesêd e se colocou a serviço do sofredor.

A misericórdia divina é a qualidade como que predominante em Deus. Ela banha o homem com um gesto de acolhida indescritível, que inclui compaixão, perdão, clemência, tolerância, piedade, paciência, ternura, etc. Em todo o benefício concedido por Deus aos seres humanos podemos enxergar um ponderável caráter dessa misericórdia, pois as doações divinas não se baseiam em méritos ou direitos humanos.

O amor divino motiva e precede, funda a confiança e fortalece a fé. Jesus, Deus e homem de verdade, é mostrado por São Paulo como o “sumo sacerdote misericordioso” (cf. Hb 2, 17). Aos sofredores de carência material, ele vem anunciar um tempo de fartura.

Os que alegram o coração paterno de Deus não são os homens e mulheres que se crêem justos e freqüentam diuturnamente os templos e as atividades dos movimentos eclesiais, mas sim os pecadores arrependidos, aqueles que confiaram na misericórdia, comparáveis à ovelha ou à moeda perdida e reencontrada (cf. Lc 15, 7.10). Olhando de longe a estrada, quando percebe o retorno do filho, movido de compaixão, o pai corre ao seu encontro (Lc 15, 20). A misericórdia de Deus sempre espera por aquele que ainda não se converteu, qual uma figueira estéril (cf. Lc 13, 6-9).

Nos tempos messiânicos, a misericórdia de Deus tem em Jesus Cristo sua realização efetiva, a partir do anúncio programático, feito na sinagoga de Nazaré: o Espírito de Deus está sobre mim… (cf. Lc 4, 18-21). Mais do que no AT, a partir de Jesus a misericórdia é exigida dos homens, entre si, conforme o exemplo divino: sejam misericordiosos… (cf. Lc 6, 36). A partir dos tempos do Messias instaura-se, para sempre, a era da misericórdia. A condição essencial para o cristão entrar no reino, é reiteradamente afirmada por Jesus: a misericórdia (cf. Mt 5, 7). Não podemos fechar nossas entranhas diante da miséria do irmão, O amor de Deus só permanece naqueles que exercem misericórdia (cf. 1Jo 3,17).

São Paulo, apóstolo e mestre do cristianismo, confessa-se agraciado pela misericórdia (2Cor 4, 1) daquele a quem chama de “pai da misericórdia” (1Cor 1, 3). Ele vê e anuncia toda a obra da salvação sob a ótica da misericórdia de Deus: “Deus encerrou todos na desobediência para usar com todos a misericórdia” (Rm 11, 32). É também do apóstolo dos gentios a menção que refere Deus como “rico em misericórdia” (cf. Ef 2,4).

Assim – e nunca é demais repetir – a salvação não é uma questão de méritos ou esforços humanos, mas fruto da misericórdia de Deus (cf. Rm 9, 16). Deus nos mostrou, de forma vigorosa e definitiva, sua misericórdia através da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos (cf. 1Pd 1, 3). A salvação, mais do que pelo nosso esforço, ocorre pela generosidade de Deus. A misericórdia, para ele, vem em primeiro lugar: “Eu quero misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9,13).

O notável teólogo medieval, Santo Anselmo de Cantuária († 1109), um doutor da Igreja, especializado em espiritualidade, nos traz um importante contributo (sua obra é Cur Deus homo?), capaz de iluminar nossa reflexão a respeito do conjunto de nossa fé, que repousa no mistério cruz/redenção:

O homem (e portanto Jesus) não pode dar-se a Deus de modo mais total que se abandonando à morte para a sua glória. Eis porque Jesus devia morrer na cruz para devolver consigo, a humanidade inteira, ao Pai (…). A misericórdia de Deus, que no evento da cruz parece negada, nos vem harmonizada com a justiça, que não podemos imaginar nada mais justo. Com efeito, que conduta pode ser mais misericordiosa que a do Pai, dizendo ao pecador, condenado a tormentos eternos e privado daquilo que poderia salvá-lo: “Toma o meu Unigênito e oferece-o por ti!”, enquanto o Filho, por sua vez, lhe diz: “Toma-me e salva-te! (…). Ele (Deus) amou quando não amei, e se tu (Cristo) não tivesses amado quem agora ama, ninguém teria sido capaz de amar”.

Nas chamadas “parábolas da misericórdia”, já aludidas, do evangelho de São Lucas, são encontradas privilegiadamente três narrativas que evidenciam a misericórdia, o perdão e a acolhida de Deus. A maioria dos biblistas afirma que o capítulo 15 do III Evangelho é como que “o coração da boa notícia de Jesus”. De fato, sua leitura oferece um raro momento de edificação espiritual e serve de paradigma de convivência. Nesse bloco doutrinário vamos descobrir as parábolas da “ovelha extraviada” (vv. 3-7), da “moeda perdida” (vv. 8-10) e do “filho pródigo” (11-32). Embora possam ser estudadas dentro de um mesmo contexto, as três histórias possuem elementos que, analisados isoladamente, dão forte embasamento à fé em Jesus, ao amor ao próximo e ao desenvolvimento de uma vida cristã discernida.
Que méritos tinha aquela ovelha fujona, a ponto de o pastor largar tudo e ir atrás dela, para resgatá-la? Nenhum! Ele foi buscá-la porque ele é rico em misericórdia: “E eu lhes declaro: assim, haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (v. 7).

Jesus ressalta, nesse episódio, a alegria do Pai, em função de um pecador que se converte. O júbilo divino, dado a dramaticidade da evasão e iminência da perda do pecador, é maior do que aquele dispensado à rotina virtuosa dos justos. Na parábola do filho pródigo (ou seria do “Pai misericordioso”?), o filho cai em si e vê a burrada que fez, ao deixar a casa do pai e tentar a sorte em um mundo infenso. Não se pode falar na misericórdia de Deus sem aludir o enredo desta parábola.
Então, caindo em si, disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome… Vou me levantar, e vou encontrar meu pai, e dizer a ele: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho. Trata-me como um dos teus empregados”. Então se levantou, e foi ao encontro do pai (vv. 17-20).

Observando as circunstâncias ao seu redor, aquele filho reconhece que tudo aquilo que ele buscou no mundo, havia em abundância na casa de seu pai. É o pecador que busca a felicidade nas coisas, valores e prazeres do mundo, e acaba se convencendo de que é só em Deus que sua alma quer repousar, e só o Pai pode fazê-lo feliz. Só o Reino é sua casa. Feliz o homem que pode, a tempo, reconhecer em Deus a fonte de todas as misericórdias.

Em toda a história, é bom notar que – e Jesus, na parábola, deixa isso bem claro – o pai não foi buscar o filho, acatando sua decisão e respeitando sua liberdade. Na vida, Deus não sai atrás de nós, uma vez que respeita nossas decisões. Quando, porém, reconhecemos nossa culpa, como o jovem da parábola, e damos o primeiro passo de volta para casa, o Pai assume o controle, e vem ao nosso encontro para nos receber, e nos ajuda a entrar em sua casa. É interessante salientar que, com o arrependimento e o propósito, o filho prepara como que um discurso para pedir perdão ao pai, afirmando que não é mais digno de ser seu filho, que aceita ser tratado como um empregado.

Na estrada, no caminho de volta, o pai, que esperava ansiosamente o retorno do filho, reconhece-o pelo coração, naquele caminheiro sujo, magro e alquebrado. Reconhecendo-o vai ao seu encontro e o abraça. Enquanto o arrependimento caminha o perdão corre ao encontro. Jesus usa uma expressão que não pode – de forma alguma – passar despercebida: o pai teve compaixão… e saiu correndo ao encontro (v. 20b). E nem quis ouvir as desculpas do filho. Essa tentativa foi abafada pelo abraço e pelo beijo do pai:

Mas o pai disse aos empregados: “Depressa, tragam a melhor túnica para vestir meu filho. E coloquem um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Peguem o novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto, e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado”. E começaram a festa (vv. 22-24).

Ao determinar que os empregados providenciassem “a melhor roupa”, o pai demonstrou uma situação de exaltação diante do quadro de miséria anterior. O filho chegou descalço, como um escravo, e recebeu sandálias como um homem livre. Caminhar pelas trilhas do pecado deixa nossos pés em feridas. A graça de Deus é como um calçado que protege os pés e não nos deixa resvalar (cf. Sl 17, 5; 121, 3).

O anel que o pai coloca no dedo do filho, dentro dessa simbologia de restauração, revela o restabelecimento de uma aliança. Essa aliança é retratada por muitos gestos do pai: além do anel, a túnica nova, a sandália, o beijo e a festa. Quanta riqueza se pode haurir desses gestos que, no discurso de Jesus, caracterizam a atitude receptiva de Deus!

No cerne da boa notícia, encontramos a proclamação de misericórdia de Deus. Dentro dela, a história do pai que perdoa e acolhe, sem restrições, cobranças ou saldos a pagar. Talvez esteja aqui um dos pontos mais significativos e reveladores de toda a pregação de Jesus.

A misericórdia é a virtude-tipo de nosso Deus (cf. Ef 2, 4). Por ela Jesus se encarna (cf. Jo 3, 16) e morre na cruz (cf. Fl 2, 7s). É também movido por misericórdia que o Pai o ressuscita (v. 9ss). A única paga adequada ao uso da misericórdia é a própria misericórdia. Nesse episódio Jesus deixa bem claro. Só usando de misericórdia é que obteremos a suprema misericórdia do Pai.

Deus age sempre com profunda misericórdia, perdoando as nossas dívidas, acolhendo, esquecendo, passando um pano para apagar as nossas faltas. Sua misericórdia é uma dádiva gratuita, sem jogo de palavras, sem qualquer contrapartida, a não ser a nossa própria misericórdia para com nosso próximo.
Pregando aos irmãos de uma comunidade cristã, há tempos, perguntei-lhes qual a essência do cristianismo. Quase que unanimemente, todos responderam que era a ressurreição de Jesus. De fato, em termos de fé cristã e projeções ao infinito, sem dúvidas, a ressurreição é um evento de extrema importância. Mas não é o fato que impulsiona concretamente nossa fé e atitude cristã. Confirma, mas não é o que dá o primeiro impulso. A ressurreição é efeito. Qual é a causa? A causa, o fundamento de nosso cristianismo, é a misericórdia de Deus; é seu amor pelo filho, pelo mundo e por nós. Ele amou o mundo que, deu seu filho, para que quem nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna (cf. Jo 3, 16). Misericórdia, encarnação, cruz, ressurreição. Este é o itinerário da nossa fé e da nossa redenção.

A festa que o pai faz para recepcionar o filho que resolveu voltar é semelhante à alegria de um pastor que reencontra uma ovelhinha extraviada, ou de uma dona-de-casa que acha uma valiosa moeda que estava perdida. Por conter, como sinal do perdão e do amor do Pai, estas três magníficas histórias, chamadas “parábolas da misericórdia”, é que o Terceiro Evangelho é chamado o evangelho da misericórdia. Por este motivo, não podemos lê-las como histórias bonitas, mas como um relato de nossa vida de pecados e do amor do Pai, sempre disposto a nos perdoar. No mistério da cruz, Jesus revela todo o vigor da misericórdia de Deus: “Amando os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim” (cf. Jo 13, 1).

A escatologia (paixão-morte-ressurreição) de Jesus é a revelação da misericórdia de Deus levada às últimas conseqüências. O maior obstáculo à misericórdia divina é o endurecimento do coração do pecador (cf. Is 9, 16; Jr 16, 5.13). Como, bem sabemos, o coração é uma casa que só pode ser aberta pelo dono, pelo lado de dentro, Deus bate e espera a resposta do homem (cf. Ap 3, 20).

Misericórdia é, como já foi visto aqui, o ligar-se com o coração à miséria do pecador, do pobre e do excluído. É sentir visceralmente a dor do outro. Misericórdia não é uma simples atitude assistencialista, cíclica e superficial, mas algo radicado no amor de Deus, nas propostas do Reino e na cruz de Jesus Cristo. Ser misericordioso é sentir com o coração a aflição e a miséria do outro.

Embora seja atributo essencial de Deus, imperfeitamente o homem pode exercer misericórdia com seus semelhantes. Nesse aspecto, usar de misericórdia, como o samaritano que socorreu o ferido (cf. Lc 10, 25-37), é sentir com o outro suas necessidades, procurando auxiliá-lo a minorar seu drama. Nas “bem-aventuranças” chama a atenção quando Jesus diz: “Bem aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia” (Mt 5, 7). Em outra ocasião, ensinando como o ser humano pode aproximar-se de Deus, através da imitação de suas virtudes mais essenciais, Jesus recomenda: “Sejam misericordiosos como o Pai de vocês é misericordioso” (Lc 6, 36). Esse conselho que Jesus nos dá, longe de ser um jogo-de-palavras, indica um caminho de justiça e santidade. Ele nunca iria recomendar que fôssemos misericordiosos, se soubesse que tal conquista era impossível a nós.

Deste modo, cabe sempre lembrar que, em nossas vidas, a despeito de pecados, conversão, reconciliação, estaremos sempre ao sabor da misericórdia de Deus. Em São Paulo encontramos uma exemplar referência ao Pai misericordioso: “Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai de todas as misericórdias e Deus de toda consolação! Ele nos consola em todas as nossas tribulações…” (2Cor 1, 3s).

Deus não se deixa vencer em misericórdia. Nós sabemos disto. Ele tira o povo das garras dos “faraós” opressores e o conduz pelo deserto (consciência do pecado, provação, expiação) à terra prometida (o arrependimento e a graça), a fim de desposá-lo para sempre.

A história da salvação é rica em fidelidade e misericórdia, e, em função disto, ela vai desembocar em Jesus, que vem manifestar o amor do Pai, para transformar os homens, curando-os de seus desvios e enfermidades da alma. Para esse resgate, só um amor muito grande, o amor daquele que “está aí conosco” seria capaz de elaborar um projeto tão cuidadoso e perfeito. Nunca é demais repetir o texto-chave da misericórdia de Deus: “Deus de tal modo amou o mundo, que deu seu filho único, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).

A carência dos excluídos move a compaixão de Deus, indo desembocar no mistério da caridade que Jesus vem agregar às práxis daqueles que querem entrar no seu Reino. O núcleo, a fonte dos Evangelhos trata da misericórdia de Deus que, para refazer a humanidade destroçada pelo pecado e pelo egoísmo iníquo, e não mais só os judeus, dá-lhe seu Filho Jesus, um Messias pobre para os pobres.
Num domingo desses, como, aliás, faço sempre, fui à missa e as leituras falavam da misericórdia que deve superar todas as formalidades legais e litúrgicas de uma comunidade cristã. Após chamar o publicano Levi-Mateus para ser seu discípulo, Jesus vai jantar em sua casa. Longe de seguir as discriminações da sociedade de seu tempo, Jesus aceita o convite de seu novo amigo. Assenta-se à rasteira mesa, montada ao estilo palestinense, junto com o dono da casa e seus novos “colegas de serviço”.

Alguns biblistas afirmam que nesse evento Jesus teria contado a parábola do “pai cheio de misericórdia” (filho pródigo). Os fariseus, ao verem isso, ficaram indignados e, sem coragem de questionar diretamente a Jesus, perguntam aos discípulos: “Por que o mestre de vocês come com os pecadores?”. Jesus é que lhes responde: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes”. E conclui: “Aprendam, pois, o que significa: ‘Eu quero a misericórdia e não o sacrifício’”.
A Palavra de Deus esclarece que o sentido da missão de Jesus está acima da lei, e que a justiça do Reino é inseparável da prática da misericórdia. Nossa forma de praticar a religião, muitas vezes, é conduzida dentro de parâmetros nitidamente humanos, onde criamos regulamentos e proibições, como não batizar filho de mãe-solteira ou negar comunhão ou pertença a movimentos eclesiais a pessoas recasadas. Será que Jesus seria tão rigoroso assim? Fechamo-nos em nossos pequenos oásis de fervor (quase fanatismo) religioso, como se a Igreja fosse uma elite de puros e inatacáveis. Será que Jesus faria a divisão entre bons e maus apenas por critérios externos? O ato de justiça de Jesus provoca na casa de Levi-Mateus uma grande festa.

Os critérios de perdoar, não julgar, usar radicalmente da misericórdia e da solidariedade, jamais buscar vingança, fatores determinantes da personalidade e das práticas de Jesus, deveriam estar sempre presentes diante de nós, de modo que pudéssemos discernir entre a autenticidade do apostolado e o bitolamento a critérios geradores de exclusão. Uma Igreja que não esteja orientada e disposta a atuar além de seus limites e do mundo de seus fiéis, não é uma Igreja missionária.

Uma comunidade que não propicia uma abertura a seus membros afastados, não está preparada para a vinda do Senhor. Nesse particular, ao encerrar, cabe a pergunta para ser debatida depois. E nós, como estamos preparados para o julgamento da misericórdia?

A grande novidade do cristianismo – e por isto ele se baseia numa boa notícia – foi ter instaurado um modo de ser, pensar e agir, enfim, um novo estilo de vida, a partir da compreensão e vivência da misericórdia divina. A boa notícia trazida por Jesus é aquela do amor e do perdão aos inimigos, conforme o Pai – rico em misericórdia – ensinou à humanidade, desde o princípio. Levando esse espírito de generosidade e misericórdia, Jesus levou o amor às últimas conseqüências, e não fez outra coisa que falar em perdão, ensinar a perdoar e também perdoar aos que pecaram e aos que o ofenderam. Este é um caminho muito difícil, antigo e sempre repleto de novidades. Deus, ao encarnar-se através de Jesus, pelo poder do Espírito Santo, dá uma lição:

Deus de tal forma amou o mundo, que deu seu Filho Único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna (Jo 3, 16).

Há um pergunta crucial, capaz de iluminar toda a nossa reflexão: você daria a vida de um filho seu, ou de um irmão, marido ou esposa em favor de outras pessoas? A maioria vai dizer que não, certamente. Pois Deus, um Pai rico em misericórdia deu… E deu por nós, que o negamos, que o traímos, que o crucificamos e muitas vezes o rejeitamos, trocando-o por ídolos mudos e vazios. Para ser integralmente feliz e inserido no mistério da revelação divina, o ser humano precisa fazer a experiência da misericórdia de Deus em sua vida. Quem experimenta a generosidade de Deus é o primeiro a ser beneficiado por essa graça.

O objetivo desta reflexão foi discorrer, ainda que limitada e imperfeitamente, sobre a misericórdia de Deus. Digo limitada e imperfeitamente porque no mistério de virtude e santidade que envolve Deus, é impossível penetrar integralmente. Acessamos por pistas, pela intuição e pela nossa fé. No decorrer da meditação vimos quão grande é a magnitude de Deus, e que é impossível entendê-lo tão somente através de nossa inteligência.

Esperamos que nosso propósito, de mostrar o quanto nosso Deus é rico em misericórdia, tenha sido atingido, e que ao concluir a reflexão, os presentes tenham aberto mais seus corações à bondade do Deus Uno e Trino, que está nos céus, no seu coração e em toda a parte. Estudando e conhecendo melhor (até onde se pôde ir) o mistério de Deus, é possível amá-lo mais, intuir o quanto ele nos ama, e assim, amar mais aos nossos irmãos, especialmente os carentes, os sofredores e aqueles que foram excluídos pelo egoísmo de muitos.

Deus derrama sua misericórdia sobre nós, como a mostrar-nos como deve ser a nossa relação com ele (na vertical) e com o próximo (na horizontal). Aí fica desenhado o mapa do coração de Deus: como as hastes da cruz, onde uma aponta para o Deus, rico em misericórdia, e a outra, para o irmão, carente dessa misericórdia e da nossa solidariedade fraterna.

Que o Deus rico em misericórdia esteja sempre em nosso coração e em nossa mente, para desenvolver em nós atitudes de encontro, benevolência e solidariedade. Deus se fez homem para que o homem se tornasse, em relação aos irmãos, misericordioso e receptivo. Ele veio a nós para que pudéssemos ir a ele.

Deus é Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação (2Cor 1, 3).

(Esta reflexão fez parte de um retiro ministrado a padres diocesanos na Região Norte do Brasil, em agosto 2008)