Um ‘assassinato abominável’ e mortes sem importância

Jung Mo Sung

A polêmica em torno da morte e a vida da Eluana, a italiana que ficou em coma por 17 anos, já deixou de ser manchetes nos noticiários e as pessoas voltam seus interesses e focos de atenção para outros temas. Mas, eu quero levantar uma questão que me incomodou em toda essa polêmica. Alguns representantes da Igreja, como o cardeal Javier Lozano Barragan, presidente do Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde, expressaram uma posição firme, clara e sem nenhuma dúvida: o que ocorreu foi um “assassinato abominável”. Muitos católicos comuns e grupos organizados também manifestaram publicamente suas posições de defesa do valor absoluto da vida e, por isso, a oposição à decisão dos pais da Eluana e da justiça italiana.

O que me incomoda aqui não é a defesa do valor absoluto da vida (como se a vida não fosse essencialmente relacional), mas quando e em que questões essas manifestações ocorrem de forma tão categórica e pública. Pessoas e grupos que condenam de modo absoluto a interrupção de mecanismos artificiais de manutenção de vida das pessoas que estão condenadas ao estado vegetal condenam também todas as formas de aborto e a manipulação dos embriões. Recentemente eu fiquei meio chocado assistindo, em um programa de TV católica, um padre, que eu admiro, fazer um longo discurso em defesa dos embriões. Esse discurso estava recheado de críticas ao aborto e pesquisas com células-troncos a partir dos embriões em nome da defesa do valor absoluto da vida.

O interessante -ou o triste- é que não vemos essa mesma defesa acalorada e militante da vida quando estamos diante de fatos, cenas e notícias de morte de milhões por causa da fome ou da pobreza. Daí surge a pergunta: por que os representantes institucionais da Igreja Católica e diversos grupos que seguem essa linhas não assumem essa defesa do valor absoluto da vida em todos os campos da vida e da sociedade?

Eu penso que essa “parcialidade” da defesa absoluta da vida tem algo a ver com o modo como eles “vêem” a realidade humana e social e as questões morais. Eu não penso que a principal causa seja um preconceito contra os pobres, pois mesmo que a Eluana fosse uma moça pobre a reação provavelmente seria mesma. Em outras palavras, precisamos entender melhor a “cabeça” com que essas pessoas vêem a luta pela defesa da vida.

Nós vemos a realidade não com os olhos, mas com a cultura internalizada na nossa “cabeça” que dirige o nosso olhar, escolhe os fatos e dados e os interpreta. Todo “ver” é também um “julgar”. (Nesse sentido, o famoso método “ver-julgar-agir, isto é, planejar a ação” não pode ser visto como três momentos distintos, separados, e justapostos) O fato de essas pessoas, com toda boa intenção, concentrar a sua luta pela defesa da vida a situações em torno de aborto, manipulação dos embriões, eutanásia e ortonásia, e em alguns casos e lugares também contra a pena de morte tem relação com a sua visão do mundo e a noção de pecado e as causas do mal.

O que há de comum entre esses diversos problemas nos quais essas pessoas defendem de modo absoluto a vida é o fato de que podemos detectar de modo (mais ou menos) claro os responsáveis pela morte. No caso da Eluana temos a lei, que Berlusconi com apoio do Vaticano queria mudar, o juiz e o pai dela. No caso da pena de morte, a lei e o governador ou presidente que não quer comutar a pena de morte do acusado. No caso do embrião, a lei e os médicos e outras pessoas envolvidas. Em todos esses casos, o juízo de pecado pressupõe a definição dos responsáveis e as suas intenções motivadoras das ações. Aparentemente é fácil detectar quem está matando ou atentando contra a vida. É um modo de julgar que pode ser definido como “moral de intencionalidade subjetiva”: o foco é a intenção das pessoas e as relações diretas da ação (as causas e os efeitos).

No caso das mortes pela pobreza e fome, é mais difícil definir o “culpado” que teve a intenção de matar tanta gente de fome. Isso porque essas mortes não são provocadas de modo direto, mas por mecanismos indiretos que não permitem que os pobres vivam. Em outras palavras, um sistema político ditatorial ou a ação de aborto mata diretamente, enquanto que o sistema econômico opressivo não permite que os pobres vivam.

Esses sistemas econômicos que provocam mortes de milhões não são visíveis aos olhos, mas somente através de análises teóricas. Além disso, os agentes econômicos que são em parte responsáveis por essas mortes não têm necessariamente a intenção de matar. E essas análises que nos permitem ver o que os olhos e o senso comum não conseguem ver, que a Teologia da Libertação chamou de “mediação sócio-analítica”, pressupõe algo além das intenções subjetivas, que são as estruturas sociais que geram resultados não intencionais, isto é, resultados de ações que não estão de acordo com as intenções dos sujeitos que realizaram a ação. (É por isso que, no meu último artigo “Bônus dos executivos e a Teologia da Libertação”, eu disse que a mediação sócio-analítica não deve ser simplesmente confundida com o ver).

Um dos grandes desafios no processo de formação e educação dos agentes das Igrejas (padres, freiras, pastores e pastoras, lideranças leigas, membros das comunidades, etc.) é superar essa visão do mundo e da moral que não consegue enxergar a complexidade da vida humana e social e reduz tudo a uma falsa clareza de “absolutamente certo ou errado” ou “defesa absoluta da vida”; e reduz os juízos éticos à intenção das pessoas ou a ações diretas, sem perceber os efeitos não-intencionais (bons ou maus) gerados pelo sistema social em que vivemos.