Papa Francisco em Lampedusa

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

A ilha de Lampedusa, no sul da Itália, representa uma espécie de porta de entrada para os imigrantes que chegam do norte da África. As tensões, conflitos e contradições da chamada Primavera Árabe, por um lado, e a pobreza secular, por outro, continuam atraindo milhares de pessoas ao velho continente europeu. Refugiados, imigrantes socioeconômicos, jovens em busca de um futuro mais promissor… Todos ali se encontram, numa tentativa de encontrar o camino para uma vida melhor.

Há pouco, as autoridades italianas responsáveis pela imigração foram acusadas pela Alemanha de encaminhar centenas de imigrantes a Hamburgo. A verdade é que o fluxo sobre Lampedusa continua a crescer, apesar da crise política e econômica na Itália e por conta dos problemas ao norte do continente africano. A Península italiana se torna, ao mesmo tempo, país de destino, de trânsito, mas também de origem. Paralela à chega dos africanos, milhares de jovens italianos, muitos com diploma nas mãos, deixam a península em direção aos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e outros lugares.

Convém sublinhar que Lampedusa, em meio ao mar Mediterrâneo, representa para os que pretendem entrar na Europa o que as ilhas do Caribe e o México representam para os que se dirigem aos Estados Unidos; ou o que a Turquia juntamente com os países do leste europeu representam para a chamada migração leste-oeste. Também este fluxo, originário dos territórios da antiga União Soviética e dos países asiáticos em direção à Europa, prossegue de forma mais ou menos intensa e complexa.

O mais trágico é que, nessas difíceis travessias, não são poucos os que perdem a vida nas águas do Mediterrâneo ou do mar caribenho, bem como na fronteira desértica entre México e Estados Unidos ou nos demais pontos críticos que unem (ou dividem?) a Europa da Ásia e da África. Mesmo sem contar os que se perdem para sempre, as estatíscas falam de milhares de pessoas que não conseguem alcançar a outra margem da “prosperidade”. Grande parte delas exploradas até o último centavo pelos intermediários (coyotes); cidadãos sem nome, sem rosto, sen enderenço, sem família, sem pátria… Sem identidade!

Porém, como salientava o então Papa Benedito VI, na sua mensagem para a Jornada Mundial do Migrante e do Refugiado, em janeiro de 2013, “milhões de pessoas estão envolvidas no fenômeno das migrações, mas essas não são números! São homens e mulheres, meninos, jovens e anciãos que buscam um lugar onde viver em paz”. Rompem barreiras, enfrentam os mais insólitos obstáculos, deixam pelo caminho seus mártires para escapar à pobreza, à miséria e à fome; para vencer o preconceito, a discriminação e a xenofobia; ou para superar as divisões político-ideológicas e as tiranias, que não admitem qualquer tipo de oposição ao “pensamento único”.

Seguindo a solicitude pastoral da Doutrina Social da Igreja (DSI) e o pensamento de seus antecessores, o Papa Francisco faz uma visita a Lampedusa. Não, não se trata da presença de um chefe de estado com toda sua comitiva. Tampouco se trata de um jogo de cena para os microfones, os holofotes e as câmeras. O que se vê é a compaixão de um pastor pelas “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38), o qual sente a necessidade de fazer uma homenagem, um réquiem, aos imigrantes anônimos que perderam a vida antes mesmo de por os pés na ilha italiana. Tiveram seus sonhos ceifados no meio da travessia, como tantos outros pelas estradas do êxodo.

Gesto que reaviva e rejuvenesce não só as linhas básicas da DSI, mas também as intuições do Concílio Ecumênico Vaticano II. Este renovou o conceito de Igreja – Povo de Deus em peregrinação missonária pela face da terra – e a própria litúrgia – celebração viva e vibrante, em comunhão e sintonia com o cotidiano do povo. Mas o Papa, de forma particular, torna bem presentes as primeiras palavras da Gaudium et Spes, Constituição Patoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje: “as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS, nº 1). Eco ilustrativo da passagem bíblica onde o autor coloca na boca de Deus quatro verbos de grande atenção, sensibilidade e proximidade para com a situação concreta do povo escravo no Egito: “eu vi a miséria… eu ouvi o clamor… eu conheço o sofrimento… ei desci para libertar…” (Ex 3,7-10).

O gesto do Papa, por outro lado, atualiza e fortalece a “opção preferencial pelos pobres”, núcleo central da teologia da libertação (TdL). Reflexão teológico-crítica a partir da prática dos cristãos nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e nas Pastorais Sociais, a TdL se deixa iluminar e ao mesmo tempo ilumina aqueles que descem aos porões da sociedade, que se deslocam aos grotões masi longínquos e atuam nas periferias do poder e da riqueza. Entre a teologia e a práxis cristã cria-se um círculo virtuoso em espiral progressiva, onde as duas dimensões se enriquecem reciprocamente. É o que se chama de círculo hemêneutico, pelo qual a Palavra de Deus traz luz sobre determinada realidade socio-histórica e esta, quando refletida à luz daquela, por sua vez aprofunda a leitura dos textos bíblicos, num mútuo entrelaçamento que, uma vez mais, enriquece a ambas de forma crescente.

“Come vorrei un Chiesa povera per i poveri, i ultimi, i piccoli… (Como gostaria de uma Igreja pobre para os pobres, os últimos, os pequenos…”, disse o Papa Francisco logo após a eleição, numa coletiva de imprensa. A visita a Lampedusa, se já não bastassem suas atitudes anteriores, sem dúvida o coloca decisivamente nessa direção. Desta vez com uma atenção especial ao mundo da mobilidade humana, aos migrantes de todo o mundo. Deixa no ar, ao mesmo tempo, uma interpelação silenciosa, e por isso mesmo mais eloquente, a todos nós missionários scalabrinianos. Um pastor que, a exemplo de Jesus, nos chama a caminhar em direção a Deus e em direção aos più bisognosi (mais necessitados).